21 de julho de 2025
Quando deito pra dormir
9 de julho de 2025
Entre a repugnância e o regozijo
Parece trivial, mas para abordar temas como feminicídio, violência patriarcal e de que forma as instituições como família, igreja e justiça endossam essas práticas, Márcia Tiburi nos leva ao fundo do poço, junto com Helena, heroína sofrida, fria e assassina. A narrativa é concebida para lançar olhar crítico e implacável sobre as estruturas de poder e pra isso lança mão de alegorias das violências enfrentadas por mulheres em diferentes épocas e lugares.
Helena sofre um trauma na infância, ao testemunhar a morte da mãe, perpetrada pelo padrasto, a quem chamava de pai. Desse momento em diante, empreende uma busca por sobrevivência, ao mesmo tempo em que passa por todo tipo de abuso, porém carrega consigo a coragem de não deixar barato. Sai pela vida a fugir da violência masculina e atinge seus objetivos também de forma violenta.
Não se trata da narrativa de uma personagem comum. Repleto de metáforas que se aproximam do realismo fantástico, apresenta uma Helena mítica, ou mística, misteriosa, estranha, sua subjetividade não é facilmente acessível. É uma personagem que está sempre no limiar, não se sabe qual será o próximo passo. Como todas nós, que vivemos perseguidas e ameaçadas, Helena é uma sobrevivente. E age de forma tão violenta e ao mesmo tempo tão natural, que nos leva a questionar “por que concordo com tudo isso? Por que toda essa brutalidade me faz bem?” E a gente se vê nesse lugar de repugnância e de regozijo, um sentimento de vingança vibrando em conflito com a culpa por comemorar cada tiro.
A morte permeia toda a narrativa. Mulheres que matam não só para se defender, mas para acabar com o apagamento que sofrem, para chegar lá na frente, mesmo sem saber que lugar é esse. Necessitam se manter vivas, precisam resistir. Buscam espaço onde possam existir sem medo, embora esse espaço não exista; elas caminham com o medo, enfrentam o medo, matam o medo e o que lhes amedrontam. E seguem.
Depois de suas andanças e fugas, Helena chega a Paris e encontra Chloè, que a abriga em sua casa. Chloè é feminista, militante, enfrenta uma luta interna por não se conformar com a morte da filha, declarada como suicídio, mas ela tem certeza de que foi feminicídio praticado pelo marido. E acompanha de olhos bem abertos a saga da neta médica, casada com um abusador agressivo, trabalha e sustenta casa e se vira em plantões e rebate a avó que se empenha para lhe abrir os olhos, enquanto tenta se convencer de que é assim mesmo, ele é assim mesmo, todos são assim mesmo.
Helena espalha seu sofrimento nas tintas, desenha lindamente em traços descobertos por Chloé, que é especialista em arte, trabalha no Louvre, atravessa quadros, rouba telas. Cada uma a seu jeito, têm um desejo em comum: enfrentar o patriarcado e suas imposições. E aqui Márcia Tiburi nos presenteia com um grande diferencial: as mulheres sofrem, são abusadas, mas permanecem silenciosas e acuadas no lugar do sofrimento. Elas reagem, de forma assustadora, como só vemos nos livros escritos por homens, em que os homens são os protagonistas e heróis, ovacionados em sua desumanidade e está sempre tudo bem. A história da masculinidade colocou as coisas nesse patamar e ainda seguimos esse fluxo, quase no automático.
“(...) a morte, pois, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo.”
A afirmação acima é de Edgar Allan Poe, escrita em 1846, no ensaio “A filosofia da composição”, em que explica como criou o poema “O corvo”. Para dar o tom de beleza ao texto, não hesitou em optar pela imagem e descrição de uma mulher morta. A violência contra as mulheres está encrustada na história das artes, como se vê, no entanto Márcia Tiburi faz exatamente o oposto.A pesquisadora Eurídice Figueiredo, em “Por uma crítica feminista – leituras transversais de escritoras brasileiras” cita Virginia Woolf, sobre um exercício mental que propõe “imaginar como as mulheres deveriam escrever sobre suas vidas, narrando suas experiências que nunca foram enfocadas pelos escritores do passado e não tentando imitar a escrita dos homens”. E segue o raciocínio ao se referir a Nelly Richards: muitos textos escritos por mulheres, “por mimetismo passivo ou por subordinação filial à autoridade paterna da tradição canônica”, reproduzem os modelos de subjugação masculina.
Márcia inaugura no meu histórico de leituras a personagem mulher dona da ação e da reação, que é violenta, que mata. Nesse livro, as mulheres sofrem, caem e levantam atirando. Com os olhos acostumados à literatura escrita por homens e à escrita por mulheres, mas ainda atrelada ao modo masculino de escrever e estruturar suas histórias, esbarrei no ceticismo no desfecho, apontei certa ausência de lógica nas cenas finais, algo cinematográfico, verossímil se encenadas por homens – “mulheres fazerem isso?”, porém despertei rápido: por que não?
“Com os sapatos aniquilados...” evidencia que que uma mulher é, sim, capaz de se defender com inteligência, sagacidade, frieza. Que também pode tratar seu algoz como lixo, matar e jogar fora, no melhor estilo “deixar pra lá”. Importante destacar que os personagens masculinos não são nomeados. São o padrasto, os irmãos, o policial, o marido, o pastor, o caminhoneiro... Afinal, nenhum merece nome porque na verdade são nada, além de seres apenas nascidos.
6 de julho de 2025
A mãe da Fatinha morreu
Saiu para as compras, levando sua bolsinha de mão e dentro dela a lista do que precisaria para o almoço. Desceu a rua que desembocava na porta do mercado, parou pra dar uma olhadinha nas bancas de frutas, verduras e legumes, enfileiradas do lado de fora. Pegaria o que precisasse antes de entrar. Com a calma e simpatia de sempre, cumprimentou um funcionário aqui, uma conhecida ali, passeou pelas gôndolas a encher sua cesta. No balcão do açougue pediu zelo com o corte da carne, bem bonita, vistosa e limpinha. E não esqueceu do Mineirinho que a Fatinha adorava.
Depois de parir cinco filhos homens, Fatinha chegou para ser o dengo da mãe. Mimos, chamegos, trato diário e caprichado nos longos cabelos ruivos. Bateu boca com o marido pra dar nome à criança, nascida menina pela graça de Nossa Senhora de Fátima, a quem tanto pediu tal bênção. Fatinha cresceu diferente, recusou vestidos, gostava de shorts, regata e kichute, os irmãos criticavam, o pai grunhia ao vê-la jogando bola na rua, mas a mãe era só amor. Já a minha mãe não deixava brincar com a Fatinha. “Não é companhia pra você”, dizia, sem explicar o motivo.
Todos os domingos o almoço era o momento único da semana pra juntar a família, comida diferente da rotina, risadas à mesa, assistir ao Qual é a Música no início da tarde com as barrigas estufadas. Para a mãe da Fatinha era um dia pra lá de especial. Sua caçula fazia quinze anos. Preparou a lista para a refeição preferida da filhota: lagarto redondo recheado com linguiça, maionese de legumes, macarrão. Foi o que se espalhou pelo asfalto na frente do mercado, logo que a mãe da Fatinha deu o primeiro passo para atravessar a rua. Ela não viu o carro vindo de trás da caminhonete parada em fila dupla e voou. Voaram as batatas, cenouras, cebolas, maçãs, azeitonas. O Mineirinho rolou para o outro lado da pista espumando à pressão. Embaixo da caminhonete, dois caramelos já disputavam o lagarto redondo e a linguiça, mal o corpo magro da mãe da Fatinha encontrou o chão. Tão disforme que não sobraria nada, caso lhe sobrasse vida.
De longe dava pra escutar os gritos da Fatinha chamando pela mãe; a rua inteira escutou. Tão querida, tão prestativa, tão amável, dava a vida pela filha... Baixaram as músicas, não se ouviram as risadas às mesas, nem a voz do Silvio Santos ecoando das TVs, não teve o churrasco da mãe da Vanessa, vizinha de frente da mãe da Fatinha.
Naquele tempo os mortos eram velados em casa. Da calçada do outro lado era possível ver o caixão na sala, embaixo da velha lâmpada incandescente pendurada pelo fio e rodeado por sei lá quantas pessoas. Fatinha destroçada. O tanto de gente que passou por ali, virou a noite, chorou com os filhos, provava o quanto a mãe da Fatinha era querida. Quintal cheio, calçada cheia, gente que não parava de chegar.
No enterro, logo cedinho, vi de perto o caixão baixar a sepultura, Fatinha ajoelhada em cima do monte de terra vermelha, as mãos sobre a terra vermelha, os olhos vermelhos. Falava sozinha, falava com a mãe, enquanto em volta rezavam a última oração, entoavam os últimos cânticos. Do lado de cá da cova, observava Fatinha, agora sem mãe. Fios do cabelo colavam à pele do rosto, ao suor, às lágrimas. Rosas atiradas, terra sobre a tampa do caixão e Fatinha agora gritava “Eu queria estar lá dentro com ela! Eu queria! Queria estar lá dentro com ela, ir embora com ela!” e várias mãos a puxavam pelo braço, chamavam seu nome, ela arrastada pra trás, o corpo sem forças, desfalecendo.
Há quase cinquenta anos esses gritos ecoam na minha memória, junto à sequência de imagens e rezas e gritos e sepulturas feias e malcuidadas no velho cemitério público da cidade. E não tenho certeza se realmente estava lá, porque minha mãe jamais me deixaria ir ao enterro da mãe da Fatinha.
1 de julho de 2025
De volta ao antigo lar
A mesma casa de antes, mas com a mobília um pouco
modificada.
Dei uma faxina geral, limpei cada cantinho, fiz reformas,
deixei ficar o que era mais significativo e bastante coisa ainda permanece por
aqui.
Também estou trazendo coisa de fora, de lugares em que
passei. Coisas antigas, mas que valem a pena recuperar, dar um brilho e juntar
às outras.
No momento em que posto estas boas-vindas a mim mesma,
restam pequenos retoques acessórios na decoração, mas já estamos em condições
de dar boas-vindas a você também.
Entre, fique à vontade. Role para baixo para conhecer a
casa. Se não passou pelas minhas outras moradas, há muito o que ver por aqui.
Muitas novidades estão por vir.
Seja bem-vinda, seja bem-vindo!
12 de março de 2025
Por uma crítica feminista
“A proposta deste livro é de mapear a produção literária de autoria feminina, sobretudo dos séculos XX e XXI, sem deixar, porém, de lançar um olhar sobre as precursoras oitocentistas, com o intuito de detectar as mudanças operadas na maneira de tratar de suas experiências familiares, corporais e sexuais.”
Sem delongas, Eurídice abre a introdução do livro já explicando objetivamente a que veio: mergulhar numa pesquisa minuciosa que respondesse de que forma as escritoras brasileiras se posicionam frente a temas ligados à corporeidade.
Para alcançar esse feito, a autora leu uma centena de títulos de romances, novelas, contos, das canônicas às mais atuais, e elaborou uma síntese crítica de 384 páginas. Dividido em cinco partes, o trabalho de Eurídice Figueiredo trata de gênero, cânone, ancestralidade, sistema patriarcal, temas encontrados e pinçados das obras que pesquisou, como erotismo, gravidez, aborto, maternidade, estupro, incesto, menstruação, TPM, relações abusivas, automutilação, prostituição, lesbianidade, velhice.
“As autoras têm demonstrado cada vez maior liberdade na escrita ficcional de aspectos que envolvem seus corpos.”
Uma preciosidade que nos apresenta obras importantes pouco conhecidas, quase nunca (ou nunca) citadas e também nos reapresenta obras já conhecidas, sob seu olhar afiado, numa escrita habilidosa, de fácil compreensão. Fiz descobertas maravilhosas sobre autoras já conhecidas e fui atrás de outras tantas, de quem não tinha ouvido falar. Alguns títulos me chamaram tanto a atenção, que comprei durante a leitura e fui lendo e estudando, acompanhada pela crítica de Eurídice Figueiredo.
Excelente leitura, boas surpresas, imprescindível para quem estuda feminismo e literatura escrita por mulheres.
11 de março de 2025
Epitáfio em três versos
Onofre foi enterrado às nove horas de uma manhã fria e chuvosa. Alberto, ante o jazigo em que deixaria para sempre o amigo, sentiu a tristeza comprimir o peito. Não pela separação sem retorno, mas pela despedida em dia tão feio. “Onofre merecia partir com céu claro, de azul límpido, sol manso e brisa perfumada”, pensou. Contudo, o destino escolhera a atmosfera densa, cinza, a chuva fina e constante.
No cemitério eram somente Alberto, Celeida, a dona do asilo, Karina, a psicóloga, e os coveiros. Já sem força para andar longa distância, deixaram-no ir de carro até a penúltima aleia, no cantinho à esquerda, onde ficava o mausoléu da família. Onofre fora o remanescente. Alberto acompanhara o sepultamento da mãe dele, única pessoa entre os familiares que conheceu. O amigo se foi mais de vinte anos depois.
- Não há mais ninguém que vá ocupar lugar aqui – disse Alberto para si.
Desceram do carro com cuidado; a psicóloga ofereceu-lhe o braço. Com os joelhos já tão fracos, o paralelepípedo molhado era convite ao chão. Sem choro, preces ou qualquer discurso de adeus, apenas os olhares de tristeza e saudade, viram arriar o caixão de luxo pago com antecedência pelo próprio Onofre. Queria sua derradeira casa “linda e confortável”.
Assim foi.
Alberto divagava. Tentava compreender os entrelaces da existência, que levaram Onofre à total solidão, embora tenha feito de seus dias os melhores que pode, por si e por quem privara da companhia dele. Nenhum parente, nenhum outro amigo, nenhum sobrinho, ninguém. E, no entanto, ali estava representado o maior amor dedicado a um ser, amor claramente expresso nos olhares de quem teve a divina graça de conviver com Onofre. Unidos por sentimento igual, permaneceram juntos - Alberto, Celeida e Karina - flores nas mãos, a ver cada placa sendo assentada, o cimento a cobrir as frestas; o assentamento da lápide em mármore, que Onofre também mandara fazer com antecedência.
“...como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.”
Onofre. *12.01.1931 / +14.07.2017
Sem sobrenome e sem foto. Não adiantaram os insistentes rogos de Alberto e das responsáveis pelo asilo. Ele não arredou o pé.
- Parem de tentar me convencer. Quero assim e pronto – teimou.
Jamais explicou seus motivos. O mármore ficou à espera, guardada dentro do mausoléu. Poderia ter mudado de ideia e encomendado outra. No entanto está lá, do jeito que quis, sem sobrenome e sem foto.
- Pra que foto, Alberto? Quem vai lá me visitar? Você? Vai querer ir ao cemitério pra olhar minha cara séria naquela moldura antiquada pregada numa sepultura? – perguntou ao amigo, sorrindo.
Tampouco entenderam os três versos no excerto do poema que escolhera para o epitáfio, sem citar a autoria. Onofre era desse jeito. Um jeito só dele.
A chuva fria não deu trégua. Retornaram ao asilo juntos, pois era missão de Alberto cuidar dos objetos pessoais do amigo e queria fazê-lo logo. Outros residentes os aguardavam na grande varanda do casarão; Alberto sentiu certa curiosidade nos olhares, como se quisessem saber como estava o único e leal amigo de Onofre, que morava fora e o visitava religiosamente a cada quinze dias.
Alberto estava bem. Sempre pensara que não se deve esperar do futuro a partir de certa idade. Dos oitenta e seis anos de Onofre, os últimos vinte e três passara no asilo, que todos chamavam de vila, a Vila Primavera. Estabeleceu que seria sua morada definitiva após a morte da mãe, a quem cuidou até o fim. Não teve esposa, nem filhos. Do resto da família, há muito não tinha notícias. Alberto completara oitenta e quatro poucos meses antes do amigo. Viúvo, morava sozinho num apartamento no mesmo prédio que a filha. Além dela, tinha Onofre.
Diante das caixinhas e pequenos pacotes que colocara com cuidado em cima da cama e da escrivaninha, suspirou fundo antes de começar. “Não há para quem deixar nada, é preciso decidir o que fazer”, pensou. Em suas visitas, notara a organização da pequena estante e jamais pensou que fosse ele a se ocupar da vida pessoal de Onofre, trancada naquelas caixas. A filha de Alberto o aconselhou a não assumir tal responsabilidade, o pessoal do asilo ficou em dúvida, por motivo comum: a idade. No entanto, Alberto fez questão.
- Ele só tinha a mim - suspirou de novo.
Recordações retornaram à mente em cada foto, em cada peça de roupa, cartas, cartões de Natal, de aniversário, bilhetes, bilhetes. Receitas médicas, exames, mimos recebidos pelas enfermeiras, alguns poucos livros. O mais novo adquirido da escritora que viera palestrar para os residentes meses atrás.
Alberto recostou na cabeceira da cama e respirou fundo. Ao passo que saiu o ar, deixou caírem as lágrimas. Cruzou os braços no peito, como em um abraço, e largou as palavras num sopro.
- Tanta coisa por dizer... Mas que não seriam ditas, ainda que pudesse fazer voltar o tempo.
Enxugou os olhos nas mangas da camisa, recolocou os óculos e se levantou para abrir o armário. Conferiu as gavetas, para ver se havia algo mais que roupas, quando deparou com uma caixa pequena, de madeira. Alberto levantou a tampa e dentro encontrou outro pacote de fotografias. Ali estavam todas as lembranças: desde o dia em que se viram pela primeira vez no baile de carnaval, quando estava com a família no clube e encontrou Onofre no balcão do bar, até reuniões e festas em casas de ambos. Eram dezenas de registros, guardados com esmero e anotados no verso com data e local. No fundo da caixa, um envelope lacrado: “Pra Você”. O mundo parou em torno, enquanto Alberto leu:
Rio
de Janeiro, 1º de março de 2016
Alberto,
Não
sei por que lhe escrevo, se não pretendo lhe entregar esta carta. Talvez pela
urgente necessidade de conforto, neste momento. Jamais teria coragem de dizer o
que vem por estas linhas. Quem sabe um dia esta lhe chegue em mão e não estarei
em corpo para vexá-lo com tamanha loucura. Tanta foi minha covardia que não
pude olhar-lhe com a verdade do que sinto, não soube usar da voz para
confessar-me. Agora que recorro às palavras traçadas, vejo-me incapaz de expressar
meu mais profundo desejo. Portanto, escolhi os versos de Vinícius, que tantas
vezes repeti serem meus preferidos.
Soneto do Amor Total
Amo-te tanto, meu
amor… não cante
O humano coração
com mais verdade…
Amo-te como amigo
e como amante
Numa sempre
diversa realidade
Amo-te afim, de um
calmo amor prestante,
E te amo além,
presente na saudade.
Amo-te, enfim, com
grande liberdade
Dentro da
eternidade e a cada instante.
Amo-te como um
bicho, simplesmente,
De um amor sem
mistério e sem virtude
Com um desejo
maciço e permanente.
E de te amar assim
muito e amiúde,
É que um dia em
teu corpo de repente
Hei de morrer de
amar mais do que pude.
Do
seu,
Onofre.
Longe de tudo
Lenço amarrado à cabeça, chinelos de borracha e uma bolsinha minúscula com documento e uns trocados. Botou os pés fora de casa, sem intenção de voltar ao inferno diário do tráfico, da polícia arrombando portas e vidas, da pobreza sem esperança, do isolamento imposto pelo resto do mundo. Perdera o único filho para o crime e o marido para as drogas. Não tinha mais nada, não queria mais nada. Sem rota, sem plano, ganhou a rua e andou.
Tiroteio deixa um morto e cinco feridos. Três adolescentes são abatidos durante incursão de policiais no Morro da Piedade. Hermínia caminha, sem interromper os passos para um descanso. Segue em direção ao que chama “longe de tudo”. Um lugar em que jamais esteve, mas imagina e procura fora e dentro de si, enquanto se locomove rígida e segura. Grupo fortemente armado realiza falsa blitz e rouba carros para invadir a comunidade. Sua alma, sim, conhece a lonjura que busca, como se em sonho já a visitasse, como se a trouxesse de outras dimensões de si mesma.
Hermínia aperta a passada pois necessita se afastar do tormento que deixou para trás. Crê no fim da guerra, na libertação, nunca mais medo e sofrimento. Sem prever, avança no rumo das montanhas e sobe, agora devagar. A polícia ocupa todos acessos e prende cinco traficantes. Encontra sob as árvores um veio d’água e se abaixa pra matar a sede. Está exausta. Molha o rosto, as têmporas, a nuca. Olha adiante e vislumbra o caminho. Quer encontrar o que nunca viu, o que não sabe e não conhece. Retoma sua marcha à beira da estrada, os tornozelos tocando musgos crescidos entre galhos úmidos à sombra da mata. Grupo da polícia especial invade casa e mata uma mulher e dois filhos pequenos com tiros de fuzil.
Sem ver dia nem noite, a cada trecho que vence, experimenta a liberdade de apenas ser, enche os pulmões com vigor e expira seus temores, vê ao longe a cidade, ameaça um suspiro. O ruído do repuxo atrai Hermínia, que transpõe o limite da margem e adentra a mata. Raios de sol dançam entre as frestas das copas, salpicando a água do riacho de pequenos diamantes de luz. Hermínia se ajoelha. Chora e ri. Desconhece essa sensação estranha, ao mesmo tempo serena. Se emociona, descalça os chinelos e se entrega.
Moradores do Morro da Piedade não têm paz. Nesta madrugada um incêndio destruiu praticamente todos os barracos do lado leste da comunidade. Dados não oficiais informam até agora trinta e duas mortes e centenas de feridos. Moradores desalojados e desamparados não sabem para onde ir.
Efêmero
Sem hora nem dia certos, apenas chega. Na ruazinha do lado de casa, buzina seu carro preto - o mesmo carro preto. Jamais hesito, sequer penso. Num átimo estou perto, junto, ofegante, suplicante. Braço apoiado no encosto do banco do carona, carrega um sorriso maroto e olhar vívido. O paletó está aberto, o nó da gravata frouxo. Aparenta cansaço, após um dia de trabalho exaustivo, com as mechas levemente cacheadas em desalinho pela testa, a camisa amarrotada. Não me beija. Recua, apesar da insistência do meu movimento a fim de alcançar-lhe a boca. Frustrada, beijo suas mãos, roço meus lábios em cada um de seus dedos. Contemplo seu rosto. O arfar de meu peito revela a paixão irrefreável e a saudade que parece já durar uma vida. Enquanto traga o cigarro e bafora a fumaça despreocupado, perscruta-me dos pés à cabeça, sem me tocar. O olhar dele tem tesão, tem saudade. E certa ponta de tristeza. Percebo em sua respiração o ímpeto por me tomar e se afogar no meu abraço. Fuma e me encara. Não diz nada. Nem eu. Nossos olhos dizem tudo por nós. Assim permanecemos, sem mundo em torno, sem ruído, só a névoa por trás das janelas, enroscada nos vultos das árvores da praça, e a brisa que sempre nos acompanha.
Há anos aparece sem aviso, sem prazo, sem data, e nos amamos. A falta que fazemos um ao outro é tamanha, que somos ávidos, frenéticos, furiosos até. No entanto, somos breves. Sabemos que logo acaba e ele terá de ir, ou eu. E tudo é apressado. Num dos primeiros encontros disse que me amava. A ternura em sua expressão confessava por si, nem exigia as palavras. Nessa noite, cometemos o amor, do início ao fim. A única noite em que tivemos tempo – não temos controle sobre esse tempo. Reconhecemo-nos e nos unimos, pertencíamo-nos desde algum lugar distante e sabíamos que éramos um. Beijos inesquecíveis, é o que preciso dizer, pois beijos são a porta para a entrega completa, e nada viria sem os lábios grossos e molhados, a língua faminta e sôfrega. Ainda que não possa me oferecer o amor por inteiro, como ocorre em tantas outras vezes, sou sequiosa por seus beijos, que seja somente um, efêmero, posso me contentar. Na mansidão do amor, sem a urgência dos demais no porvir, foi um beijo sem fim, que não se concluiu, até o prazer máximo do desejo saciado. O beijo que senti queimar a boca e arrepiar pele, depois de tudo.
Não sei se o amo ou se um dia amei. Amo o amor que me devota, o quanto sofre a privação de minha companhia, o anseio pelo meu corpo, a fome pelo meu sexo quando finalmente vem me ver. Ele me encanta, fascina, faz fremir cada cantinho dos meus nervos. Com ele, sou inteira dele.
Um dia, de pé diante de mim, o desalento estampado na face, olhou-me longamente. “Não quero ser seu amante”. Em poucas ocasiões se expressou pela voz. Beijou-me as mãos, meu pescoço, suspirou meu cheiro, tocou de leve meus lábios, roçou meu rosto com o dele. Curvou-se, apoiou a cabeça em meu colo e chorou. Enquanto acariciava seus cabelos negros, assisti a tarde levando embora o dia, empurrando o sol para trás das montanhas ao longe, deixando um céu vermelho. Ficamos assim, por segundos arrastados. No peito, o aperto da despedida que se aproximava, a insegurança que nos abate no instante da separação, a aflição da incerteza, o amor sofrido e resignado doendo na carne, a alma tremendo de medo de uma vida sem ele por perto. De repente, ergueu-me como a uma criança, acima dele, com os braços tesos ao alto: “Não sei se suporto mais tantos anos longe você.”
De volta ao chão, tentei eternizar aquele momento. Segurei-o pelas mãos e não consegui falar – nunca digo nada. Sinto-o, amo-o, adoro-o além de minha compreensão, porém calada. Quis trazê-lo para mim, prendê-lo talvez, quis balbuciar um “Não vá. De novo, não”. Com garganta incapaz de emitir qualquer som, limitei-me a olhá-lo, clamando por ele em silêncio, apaixonada e triste. Entre nós, a aura do costumeiro sentimento de perda iminente, de medo, de pavor por não saber se voltaremos a nos ver. Tudo acontece num rasgo de tempo, o lapso em que uma réstia de luz do sol atravessa uma clareira na nuvem e em seguida se põe. Então, desperto.
Onda de pobreza extrema
Pego meu livro, caderno, lápis, caderno e caneta. Sento no
sofá da sala, onde o ar-condicionado opera em 17º e o ventilador sopra direto
no meu pescoço, área do corpo que ferve após a menopausa. É domingo e a onda de
calor no Sudeste do Brasil cozinha os miolos.
Abro o livro sobre as pernas e olho pela janela. Ainda
transpiro, após o almoço na cozinha abafada, e respiro aliviada pelo privilégio
de ter uma casa ampla, morar numa área muito arborizada próxima à Mata da
Cicuta e ter aparelhos que aliviam a impressão de derretimento de corpo e alma.
Impossível não pensar em quem não tem os mesmos privilégios,
ao menos uma morada ventilada, um ventilador barulhento. Três da tarde, céu
azul límpido, um sol pra cada um, lindo dia de quentura extrema e de muito
sofrimento para muitos lá fora.
Lembro de uma das visitas que fiz, quando acompanhava a
equipe de atenção domiciliar a pacientes terminais, para escrever meu livro
“Alguém pra segurar a minha mão”. Bairro periférico, quase hora do almoço,
quase o mesmo calor de hoje. Numa casinha de tijolos, quintal apinhado de
entulhos de todo tipo e cheiro de sujeira, em um quarto minúsculo sem janelas
estava a paciente. Uma senhora de quase oitenta anos, acabava de chegar de uma
internação. Talvez a última. Uma cama, uma mesinha improvisada, uma cadeira
para o médico sentar.
Dona Cida, assim vou chamá-la aqui, era diabética, cardíaca,
hipertensa e sofria as sequelas de tudo junto. Falava aos suspiros e era
traduzida por uma pessoa da família. Suava. Como suava! O médico perguntou se
teve febre e como resposta ouviu que não havia dinheiro pra comprar termômetro.
Não cabiam todos da equipe dentro do quarto e mesmo se coubesse, nenhum de nós
suportaria o abafamento.
Era o que tinha e era o possível, me disse o médico. A vida
se esvaindo em meio a condições que não ajudavam, ao contrário. A morte vai
chegar mais rápido, pensei. Como garantir a dieta adequada, remédios, roupa
limpa e trocada todos os dias, ar respirável. Percebia-se que ninguém na casa
tinha conhecimento para os cuidados mínimos.
Foram muitas as famílias que conheci em cenários semelhantes
ou piores. Na experiência como repórter, infelizmente testemunhei pobreza
extrema, famílias enormes compartilhando um cômodo, sem ventilação, muitas
vezes sem banheiro, sem o básico, sem nada. Isso já faz uns trinta anos e
infelizmente tudo continua do mesmo jeito.
O sentimento de desânimo me desaba, no momento em que estudo,
leio, escrevo, aproveitando o domingo tranquilo pra colocar leituras em dia,
anotar dados de pesquisas para um artigo, fresquinha no sofá da minha casa, atendendo
a demandas do ofício.
E a pergunta que sempre me vem à mente é: “Pra quê?”
É luta atrás de luta, “êita atrás de êita”, sempre na
tentativa de mudar algo, melhorar aqui, avançar lá, mas a canícula que hoje nos
rouba o conforto vai piorar. O clima está em polvorosa. Há muito tempo algo de
concreto deveria estar em curso para frear o aquecimento tão anunciado e que
agora nos acomete com recordes de temperaturas altas, tempestades, ciclones,
furacões, incêndios florestais e até urbanos. E na outra ponta da cegueira, da
negação, dos interesses espúrios que negligenciam as necessidades, continuam lá
as famílias das donas Cidas, na mesma indignidade de sempre. Preciso respirar
fundo e tentar me concentrar na leitura, pois há compromissos a cumprir. O que
posso fazer individualmente, faço. Mas não depende do “se cada um fizer sua
parte”. É muito mais que isso, o buraco é bem mais embaixo e como ouço dizer
por aí, “isso não vai dar bom”.
Eu viro as costas
A caminho dos sessenta posso afirmar que aprendi em anos de
psicanálise que dizer ‘não’ é saudável e libertador. Aceitei de bom grado as
vitórias, as conquistas, o conhecimento, o aprendizado, amores, amizades,
filho, viagens, trabalho, profissões. No entanto também tive que me submeter às
adversidades. Perdas pelas quais choro há anos; desemprego com filho pequeno e
sozinha pra dar conta; relações tóxicas (inclusive dentro da família); um TDAH
que me causou trocentos problemas por todos esses anos, só agora corretamente
diagnosticado; um câncer de mama aos quarenta anos, que desconstruiu meu corpo,
minha casa nesta vida, e me obrigou a reconstruir a alma com os cacos que
sobraram, pra continuar meu percurso por aqui.
Todo esse combo me suavizou por um lado e me endureceu por
outro. Portanto me sinto à vontade para dizer não a outras tantas situações,
condições e pessoas. E digo ‘não’, firmemente, às pessoas sem caráter. Nesta
fala, defino como ausência – ou desvio – de caráter a criatura que atraiçoa,
abusa, intoxica, maldiz, dissimula, tem maldade no coração, mas aparenta doçura
para conseguir o que quer a qualquer custo. Gente sem caráter não mede esforços
para enaltecer o próprio umbigo, em detrimento do outro, da participação do
outro, da colaboração do outro; gente que passa o trator por cima de quem quer
que seja, ainda que machuque, adoeça ou mate.
A mim não importa quem seja ou de onde venha: mulher, homem,
velho (“Canalhas também envelhecem”, né? Vide meu livro “Justa Causa”),
LGBTQUIA+, pessoa com deficiência (Sim! Caráter não está no corpo), profissão,
classe social... Não importa a cor da pele, etnia, raça, religião, time que
torce. Não tolero e não tolerarei a canalhice da fala doce pela frente e a flexa
atirada na minha nuca quando me viro. Não tolero e não tolerarei as cobranças
por visibilidade dos próprios feitos, enquanto é vil, venal, desumano, infame,
imoral, desonesto, hipócrita, sonso, mal, cruel. Eu digo ‘não’.
Viro as costas solenemente; me levanto, se sentar na minha
mesa; viro a cara, se me olha; mudo de calçada, se vir em minha direção;
desprezo.
Não sou espiritualmente evoluída para relevar, compreender,
perdoar e ser generosa com gente mau-caráter. Não quero e não preciso ser benevolente
com pessoas abjetas. Parabéns a quem consegue.
Por fim, não aceito cobranças, muito menos exigências dessas
criaturas repugnantes e nem atendo aos apelos de quem as defende, seja por
ingenuidade ou excesso de generosidade ou, sei lá, por má fé, por serem semelhantes.
Até porque não cobro bom comportamento de ninguém e jamais vou permitir que me
cobrem. Tenho muitas limitações, mas se tem algo que não tolero, de jeito
nenhum, é gente mau-caráter. Era só isso.
(Texto publicado originalmente em 2023)
Salvar o fogo
A escolha do tema, a ambientação, as personagens, a Luzia...
Pessoas tão reais, tão possíveis, tão distantes do meu mundinho branco e
privilegiado, urbano e cheio de possibilidades.
De novo Itamar vai ao interior da história, das dores e
cicatrizes dos meus e nossos de antes, da miséria, da fome, da falta de tudo,
do material ao que é essencial à vida, à vida do corpo e da alma.
Ô, Luzia...! Que vontade de pegar Luzia pela mão e trazer
pra casa, dizer que ela pode ser perdoada e se perdoar, que não cometeu pecado
algum, que pode se libertar de si mesma. Vontade de sentar com Luzia à mesa da
minha cozinha e tomando um café quente lhe dizer que sim! ela tem direito de
amar aos seus.
Itamar faz isso comigo. Me compele a querer fazer algo por essas
pessoas, talvez pela culpa ancestral da minha branquitude.
É tanta verdade o que se lê na obra do Itamar, que aquelas
vidas seguem seus rumos, em continuidade, em um ciclo sem fim, porque a
pobreza, a tristeza, o abandono, a solidão e o isolamento das minorias
miseráveis também não têm fim, desde que o mundo é mundo – espero que não dure
mais tanto tempo.
São essas as minhas palavras soltas, sem nenhuma pretensão,
apenas pra dizer francamente o que uma boa história me causa. E taí um recorte
do tanto que Salvar o fogo me alcançou e há três dias mexe com tudo que é meu.
(Texto publicado originalmente em 2023)
Sentei na pedra e chorei
Ia àquele consultório toda semana. Era uma obrigação imposta pela família “conversar com o doutor Gilson”, como se aquele palavrório sem sentido fosse me fazer mudar de rumo em plena crise de rebeldia-pós-casamento-precoce-mal-feito-recém-terminado.
A intuição nunca me enganou; a única pessoa em casa que tinha restrições ao doutor era eu. Ninguém sabia, mas passava longe daquele endeusamento, a idolatria, a confiança exagerada, só porque era profissional muito bonzinho, amigo da minha irmã. A cara dele não passava coisa boa; os olhos transmitiam algo estranho, que a compreensão não alcançava. Só sei que não gostava.
Até que um dia aconteceu. O inesperado esperado. Ele mostrou o que era de verdade, ou seja, um escroque.
Eu chorava sem trégua. A vida, aos dezenove anos, estava virada do avesso, e a família, sem entender o que ocorria com minha cabeça, empurrava-me para que aquele homem vil fizesse o papel de psicanalista, me ouvisse e dissesse coisas que me conduzissem ao que pensavam ser o caminho certo. Era educado, a voz baixa e suave, falava manso como qualquer ser bondoso ou que se faça de. O tom da voz saía meio rouco. Recebia-me de modo cortês, com abraço, dois beijos, sentava-se atrás da mesa e eu à frente, como numa consulta convencional.
Só que nesse dia minha fragilidade estava no ápice; não conseguia dizer nada; só chorava. Ele se levantou, se aproximou e tocou meu ombro.
- Vem cá. Você está precisando de colo.
Eu boba, ingênua como minha criação me fez ser, acreditei e aceitei o falso acolhimento. Ele recostou na maca e me puxou. Abraçou-me forte, inicialmente como um pai carinhoso. De repente, as mãos pesadas começaram a alisar minhas costas, de cima a baixo. Tensionei o corpo, pelo estranhamento. No mesmo instante em que respirou quente no meu pescoço, abaixo da orelha, as mãos desceram um pouco mais e pressionaram levemente meus quadris. Fiquei em choque, primeiro sem acreditar no que estava acontecendo e depois, sem saber como reagir. Afinal, ele era o médico da família, grande amigo, me conhecia desde criança.
Quando as mãos dele pressionaram mais forte, me puxando de encontro a ele, senti a realidade que não queria. Afastei-me e então vi, sob a calça branca de tecido fino, quase transparecer o pênis em completa ereção. Apartei-me por completo, peguei a bolsa pendurada na cadeira, a porta e corri. Não esqueço a expressão decepcionada, do tesão em máxima potência, interrompido.
Saí desnorteada pelo corredor do hospital. Não havia em quem confiar, com quem conversar. A família não alcançava o que ocorria comigo naquela idade, não era capaz de lidar com uma adolescência na sua forma mais conflituosa e entregara tais responsabilidades a outro. Eu, por minha vez, precisava crer nos meus e então, embora toda a confusão mental do momento, obedecia à ordem: - Vai conversar com o doutor.
Perdida. Mais que perdida fiquei vazia. Saí da porta do hospital, parei na calçada. Não era capaz de me concentrar no que precisava fazer. Tinha que ir embora. Pra onde? Pra casa? Que casa? Onde é minha casa? Quem vai me acolher agora? Pior: não havia a menor chance de revelar o que acontecera naquele consultório. Quem acreditaria? Para minha família, era Deus no céu e Gilson na Terra.
Sem mais uma alma pra pedir socorro, a única atitude que poderia tomar era mesmo voltar pra casa. Virei o corpo, avistei a delegacia de polícia. O ponto de ônibus era ao lado. Segui em frente, atravessei a rua; passava pelas pessoas sem vê-las. Estava tonta, a mente em turbilhão, não pensava de forma coerente, parecia alucinada. A visão de minutos atrás me dava ódio, asco, queria vomitar.
Parei em frente à porta da delegacia; as lágrimas saltaram, grossas. Olhei lá pra dentro, baixei a cabeça e segui. Já no ponto de ônibus sentei numa grande pedra, velha conhecida, e não me segurei. Chorei. Chorei muito. Solucei a ponto de chamar a atenção de outras pessoas.
- Moça, você tá passando mal? Precisa de ajuda?
Agradeci. Enxuguei o rosto. Disse que estava triste, de luto. Eles não sabiam que o luto era por mim. Chegou o ônibus e os trinta minutos do trajeto se tornaram a viagem mais longa da minha vida.
Jamais precisarei fazer esforço para lembrar o que ocorreu naquela manhã, naquele hospital, com aquele homem que aprendemos a chamar de médico, mas que pra mim não passou de mais um canalha que a sociedade fabricou com esmero. Apesar do nevoeiro que encobre a maioria de minhas memórias de adolescência, há fatos que marcam mais que nascimento e morte.
Trinta anos se passaram e pela primeira vez contei a alguém o que ocorrera. Foi uma catarse. Expus a raiva que senti da minha irmã e da minha mãe, desabafei o quanto de mágoa ainda carregava por terem, mesmo sem saber, me empurrado para o colo daquele médico escroto. Porém, os piores sentimentos que saíam do fundo do inconsciente eram por ele. Horror, nojo, ódio. Lembro a cara dele, o rosto, a língua presa, a voz rouca e sinto engulhos. Meu estômago se contorce.
Na sessão com a terapeuta tudo isso saiu de uma só vez, uma fala regada a muito choro e tristeza profunda. Saber que hoje estaria a centenas de quilômetros não me satisfazia. Por outro lado desejava estar cara a cara novamente para dizer tudo que estava engasgado, mas na verdade mesmo, preferia saber-lhe morto. Nunca desejara isso a ninguém, no entanto, morto é acabado e assim talvez me sentisse finalmente livre do passado repugnante.
O processo de matar alguém dentro da própria mente não ocorre em minutos, diante do terapeuta. É morte lenta, como ministrar doses mínimas de veneno, diariamente, até vê-lo definhar dia após dia. A cada dia imaginava matando-o de um modo diferente: por enforcamento, tiro, facada, empurrado de uma sacada do 21º andar, afogado, envenenado, surrado, capado. E me comprazia.
Até que um dia, no set terapêutico:
- Matei! Está morto, o maldito! E eu mesma sepultei pelado, branquelo, pálido, seco, sem sangue no corpo, sem caixão. Joguei-o no fundo de uma vala e deitei terra por cima, até não ver mais aquela cara e cabelos ruços. Eu matei! Está enterrado!
Meu corpo ficou leve, a mente livre, o passado apodrecendo embaixo do chão frio no meio do nada e eu liberta da lembrança da roupa branca com uma ereção quase a atravessar a calça transparente. Está morto.
Cheguei em casa, o telefone tocando. Era minha mãe.
- O doutor Gilson morreu hoje. Soubemos agora. Definhou lentamente de uma doença desconhecida até se sufocar sozinho e apagar de vez.
Jamais a vizinhança ouvira uma gargalhada tão alta, que chegou a ouvidos das gente de todos os cantos, com ecos em todas as partes.
Da janela
Estatelara-se no cimento quente da calçada em pleno sol do
meio-dia? Ou numa noite gelada, como a de hoje? “Dorme agora, é só o vento lá
fora”. Dorme o sono da morte, o tal sono eterno que lhe prometeu a religião durante
tantos anos?
Tentava imaginar o que haveria de semelhante nas vidas de
mulheres que decidiam sair de cena, como a moça que se atirara da janela do
quinto andar. Se seriam infelizes, humilhadas, rejeitadas, gordas demais,
magras demais, odiadas, cansadas, feias, fracassadas.
Ela se jogou. Atirou-se ao voo sem retorno. Que deleite!
Como sonhara com isso há tempos! Faltou-lhe coragem – ou covardia. “Para sair
da vida é preciso muita coragem. Para preferir morrer é preciso ser covarde”,
afirmou em voz alta, olhando seus pés descalços.
Recitava a letra diariamente, ouvia a mesma música sempre.
Repetia para si o verso e se imaginava como num filme, a deslizar no salto para
o nada, vestida numa camisola azul esvoaçante, a pressão do ar queimando-lhe a
face e o grito pavoroso e alucinado de quem se entrega ao vazio da morte.
“Ela se jogou da janela do quinto andar”.
Olhou para baixo, dos pés para o lado de fora da sacada. Estava
no sexto andar. Não havia mais alma perdida. O povo acorda cedo e sua angústia,
sua vontade de ir, sem jamais precisar vir, era só sua, cria da dor de todos os
dias e da solidão.
Os edifícios em silêncio, às escuras. Nem sinal das outras
vozes de outras mulheres que comumente ouvia, em prantos, aos berros, em
situação semelhante a sua, e que de repente calavam, após deixá-la aflita por
longos minutos, às vezes horas, a ponto de se ajoelhar em prece por elas.
A imensidão da cidade cobria a linha do horizonte e lhe dava
a dimensão da sua insignificância. Ninguém a conhecia, ninguém a enxergava,
ninguém a escutava. Sequer no seu corredor havia amigos.
Dor ou fantasia, fantasia ou desejo, desejo ou loucura. Queria
experimentar a sensação de se jogar à liberdade, ir, não voltar, sem se preocupar
ao ponto final da sua única aventura.
A música parou de tocar e seus devaneios foram
interrompidos. Atirou o cigarro com força, mas o vento o trouxe de volta. “Merda!”
Não queria acordar de manhã, não mais essa vez, passar por
tudo de novo e de novo e de novo. Respirou fundo. Precisava decidir e decidiu.
“Vou fazer mais um café. Amanhã troco a fechadura da porta e
aquele traste não volta mais aqui”.
10 de março de 2025
Dicas da Imensidão
Quando escrevi “Justa Causa”, recebi como crítica tê-lo chamado de livro de contos, quando na verdade seriam tão somente histórias. Talvez sim, talvez não. Sou da opinião de Mario de Andrade sobre a alma do conto, da mesma forma que não aceito padrões de qualquer tipo. Há que se considerar algumas regras para isso e para aquilo, mas fugir de normas e padrões, na verdade, é o meu padrão, como o é de tantos artistas.
Todo esse lero-lero é pra falar sobre o livro “Dicas da Imensidão”, da Margareth Atwood, que comprei como livro de contos e que, se for levar em conta o tal padrão literário do conto, trata-se apenas de um livro de histórias, dez histórias muito bem contadas.
Dez histórias de mulheres e suas fragilidades na infância, dramas de adolescência, relacionamentos, sexo, as diversas sensações diante do espelho, a velhice. E nada nessas narrativas têm lugar comum, como pode parecer, pela temática que apresenta. Atwood fala com muita sutileza sobre os ardis impostos à vida da mulher, às suas rotinas e atividades profissionais, ao que tem que se agarrar sangrando pra sobreviver. Tudo isso ambientado em lugares pra lá de maravilhosos nos campos e em torno dos lagos do Canadá.
Gostei muito da Atwood contista que acabei de conhecer. “Dicas da Imensidão” é questionador e é suave, a leitura convida a muitas reflexões e ao mesmo tempo é um passeio. Recomendo muito.
Sonho realizado antes de morrer
Deixou a bandeja e não esperou agradecimento, pois sabia que
nunca o ouviria do presidente.
- Que que é? Vai ficar plantado aí? – disse o chefe, sem
levantar a cabeça – Já fez seu serviço, agora chispa, que eu tô com muita coisa
aqui.
Aristides puxou a arma que ganhara de presente do filho do
chefe e apontou para a testa.
- “Filho da puta!”
Foi só o tempo de o chefe erguer a cabeça e receber o único
tiro. Aristides apertou as pálpebras, soltou uma gargalhada e o homem tombou
sobre a mesa.
- Tamo livre.
Abriu os olhos estatelados, porém parecia sorrir. Não estava
consciente; ainda assim sorria um riso de alegria de criança travessa. O
enfermeiro sentiu sua agitação que, apesar da respiração sôfrega, até poucos
minutos dormia profundamente, sedado que estava.
Conferiu os aparelhos, tocou-lhe o ombro, fitou-o com pesar.
- Andou sonhando, seu Aristides... – disse, com carinho – Está
tudo bem, não se agite.
Aristides cerrou os olhos. Os lábios mantiveram um sorriso
de lado. O enfermeiro juntou suas mãos com a do paciente e rezou um Pai Nosso.
A ausência da mulher na literatura
Estávamos a uma semana do Dia Internacional da Mulher, quando fui convidada para dar uma palestra a estudantes de magistério sobre a presença da mulher na literatura. Nenhum material pronto; nada arquivado. Priorizei a tarefa e mergulhei em pesquisa sobre o assunto. Seriam poucos dias para levantar dados históricos, informações atualizadas, situar o tema e roteirizar o discurso. Mal comecei a busca e dei de cara com uma pesquisa coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília, que definiu o tom da minha conversa com as alunas – não falaria da presença, mas da ausência da mulher na literatura.
A pesquisa, iniciada em 2003 pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, coordenada por Dalcastagnè, concluiu que o perfil do autor de romances no país, publicados pelas grandes editoras (Record, Companhia das Letras e Rocco), manteve-se o mesmo por mais de quarenta anos: esse autor é homem, branco, de classe média, nascido no eixo Rio-São Paulo. Os narradores também estão no mesmo lugar que seus autores, sejam protagonistas ou coadjuvantes: na maioria são homens, brancos, de classe média, heterossexuais e moradores de grandes cidades.
Os resultados da primeira etapa da pesquisa foram divulgados em 2005 e os da segunda etapa em 2018. Foram analisados 692 romances escritos por 383 autores, nos períodos de 1965 a 1979, de 1990 a 2004 e de 2005 a 2014. Os percentuais não surpreendem, no entanto chocam, por se tratar de um registro documental de uma realidade ainda difícil de ser mudada e, pior, negada inclusive por editores.
De 1965 a 1979 foram 82,6% de autores homens contra 17,4% de autoras mulheres; de 1990 a 2004 a maioria masculina baixa para 72,7% contra 27,3% de autoras mulheres; e de 2005 a 2014 livros publicados por homens ficaram em 70,6% e de mulheres em 29,4%. Entre as protagonistas, mulheres também são minoria, e mulheres negras, tanto na posição de autoras como na de personagens protagonistas aparecem abaixo de 10%. Personagens negros, principalmente mulheres, ainda aparecem como serviçais. Os autores são majoritariamente do Rio de Janeiro (33%), São Paulo (27%) e Rio Grande do Sul (9%). O que até então poderia ter sido chamado de “achismo feminista” se revelou uma ausência gritante documentada em pesquisa acadêmica.
Não coincidentemente, à mesma época descobri o projeto “Leia Mulheres”, criado em 2014 pela escritora Joanna Walsh e já consolidado no país, com tendência a crescer cada vez mais, pois estimula braços em todos os municípios. O projeto consistia basicamente em conclamar a todos e todas a lerem mais escritoras, já que no restrito mercado editorial mulheres não tinham (e ainda não têm) tanta visibilidade. A partir de 2015, Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques levaram o Leia Mulheres para espaços físicos, como livrarias e casas de cultura. Hoje, homens e mulheres leem mulheres em cerca de 150 municípios de todos os estados brasileiros e, ainda, na Alemanha, Portugal e Suíça. Uma campanha que circulou na Internet nos convidava a contar “Quantas mulheres você tem na estante” e foi o mote escolhido para não só estimular o hábito da leitura nas alunas de magistério, como conclamá-las a valorizar a produção de escritoras, inclusive com o reforço do “você também pode”. Afinal, mulheres ainda estão ausentes na literatura e em muitos outros segmentos por falta de “autorização” do machismo estrutural que se esforça para mantê-las distantes do desenvolvimento intelectual e do mercado produtivo, em qualquer área.
Registros como o da professora Dalcastagnè existem para que mulheres que escrevem – e também as que leem – tenham conhecimento do lugar que (não) ocupam e saibam que necessitam lutar bravamente para garantir no mínimo o que lhes é de direito: o de poder publicar sua(s) obra(s). Muitas não alcançam uma editora pelo simples fato de serem mulheres – sim, acontece! Em 2015, por exemplo, a escritora Catherine Nichols, depois de ser rejeitada por quase uma dezena de editoras, experimentou enviar seu manuscrito sob o pseudônimo de George. Recebeu oito respostas positivas. Nas festas literárias com grande cobertura da imprensa nacional, quando uma mulher é o foco, quase nunca é pela qualidade do seu trabalho e, sim, pelos atributos físicos. Torna-se musa do evento e ganha fotos de seu rosto e corpo nos jornais, ao invés das capas de seus livros. Milhares de mulheres têm dificuldade de escrever/publicar por causa das jornadas domésticas. Livros escritos por mulheres ainda são considerados literatura feminina, no sentido de romântico, desinteressante para o mercado, sem qualidade literária que assegure sucesso de vendas.
Pela mesma constatação da ausência da mulher na literatura, foi fundado no Brasil, em 2017, o Movimento Feminista Literário Mulherio das Letras, que atualmente conta com mais de sete mil integrantes, todas escritoras, profissionais de Letras ou que fazem parte da produção de livros, como capistas, designers, diagramadoras, ilustradoras, editoras, etc. O Movimento foi fundado por um grupo de escritoras, reunidas em Paraty durante a Festa Literária Internacional (Flip) de 2016, convictas de que não só as autoras eram menos contempladas no mercado literário, como tinham menor visibilidade e não havia equilíbrio de gênero nos convites para os grandes eventos, até hoje dominados e ocupados por homens. Já no ano seguinte o movimento reuniu mais de quinhentas escritoras em um primeiro encontro nacional, em João Pessoa/PB e não parou mais. Teve encontro em 2018, em Guarujá/SP e, em 2019, em Natal/RN. Em 2020, a pandemia obrigou-as a realizar o encontro on line [1].
A mentora intelectual do Mulherio das Letras é a escritora santista Maria Valéria Rezende, autora de cinco romances, três livros de contos e nove infantis/juvenis, premiada com Jabuti, São Paulo de Literatura e Casa de Las Americas, entre outros. Freira e educadora popular, viajou o mundo e conheceu a pobreza extrema por todos os cantos. Com a vasta experiência adquirida em suas andanças, conhece a fundo a realidade das populações mais afastadas de nossos olhos urbanos. Poucos fazem ideia de como vivem essas pessoas. Tudo o que aprendeu, sentiu e viveu transporta para suas obras, com delicadeza e sensibilidade, numa literatura que vai do humor à realidade mais dura dos brasileiros esquecidos nas comunidades periféricas. “Eu respirei o mundo inteiro, e isso entrou pelos meus cinco sentidos. Há uma variedade de lembranças, sensações, impressões... e é com isso que eu construo a minha literatura” – ela diz. Há mais de quarenta anos mora na Paraíba, conhece muito bem a realidade do povo nordestino e transporta essa realidade para sua ficção.
À Maria Valéria Rezende juntam-se centenas de outras romancistas, contistas, cronistas, poetas, acadêmicas, entre as quais posso citar algumas, com certeza deixando muitas de fora: na categoria romance/conto temos Cinthia Kriemler, Deborah Dornellas (Prêmio Casa de Las Americas), Maria José Silveira, Patrícia Melo, Eliana Alves Cruz, Marilia Passos, Natália Borges Polesso, Conceição Evaristo (também contista, poeta e ensaísta), Henriette Effenberger, Lindevânia Martins; na poesia, Divanize Carbonieri (também contista e romancista), Marilia Kubota, Jeanne Araújo (também romancista e cronista), Diana Pilatti, Nic Cardeal, Dalila Telles Veras, Liria Porto (Prêmio Jabuti), Lia Sena; na pesquisa acadêmica, Eurídice Fiqueiredo, Regina Dalcastagnè, Lilian Schwarcz, Ana Elisa Ribeiro, Luciana Hidalgo, Candice Azevedo, Djamila Ribeiro. A lista é enorme e só cresce.
Encerro este texto convidando você, leitora(or) a passar os olhos pelas prateleiras de suas estantes e verificar quantas mulheres há nelas. Caso constate que há poucas em relação aos homens ou, na pior hipótese, que as autoras estão ausentes, a relação acima pode ser um ótimo começo para uma grande mudança (sem falar nas autoras consagradas e celebradas no Brasil e mundo afora). Fica aqui, portanto, o convite para que possamos contar com sua colaboração no processo de extinção da desigualdade de gênero na produção editorial brasileira.
[1] Em 2021 não houve
encontro. Em 2022 foi realizado novamente em João Pessoa/PB; em 2023, no Rio de
Janeiro; em 2024 em Belém/PA.
(Texto originalmente publicado na Revista Arigó, Volta Redonda, 2022)
Drusa de Ametista
As residentes da casa de repouso quase nunca experimentavam um dia diferente, uma novidade que escapasse dos cuidados diários repetitivos e das minguadas visitas. Eram poucas internas na pequena morada para mulheres, em que viviam de seus próprios silêncios e lembranças. Quando muito, faziam suas refeições na mesa da sala ou tomavam sol no jardim.
Celina chegou radiante com sua caixa de livros – iria ler para as idosas. Em contatos com colaboradoras da instituição, a jovem estudante universitária coletara preferências e escolhera os títulos. Embora nem todas aceitassem recebê-la duas vezes na semana, para ouvi-la narrar histórias, Celina ficou satisfeita com a aceitação inicial.
Às portas dos noventa anos, tia Dedé foi quem surpreendeu, ao aceder de bom grado as visitas de Celina. Com as articulações inflamadas e doloridas pela síndrome que lhe invadiu o corpo a partir dos sessenta, não lhe agradavam os afagos e docilidades; não gostava de falação e não tinha trava na língua. Sem família e amigos, optou pelo recolhimento na casa de repouso, para escapar das penas do mundo e seria a primeira vez que deixaria de lado a rabugice, para se abrir a alguém de fora. Sempre fora solitária, mesmo rodeada de gente, porém a improdutividade a empurrou para a reclusão total e a distância de tudo o que lhe reportasse sentimento e sensibilidade. Apesar da retração no comportamento, curtiu a perspectiva de apreciar boa leitura, quem sabe com alguém que lhe levasse uma centelha de ânimo. Culta, inteligente e sagaz, supôs que poderia ser, no mínimo, divertido.
É com tia Dedé que se estabelece uma relação estreita, a partir do momento em que Celina apresenta a obra selecionada – Drusa de Ametista, de Maria Zelda Castanheiro, autora que conhecera recentemente. Celina apostou que o denso romance filosófico, publicado na década de setenta, suscitaria à mente de tia Dedé ao menos um bom papo, de acordo com a diminuta lista de interesses apontados por ela. Esquiva no primeiro dia, não demorou a criar com Celina uma amizade delicada, singela, fortalecida por um respeito amoroso.
– Você tem olhos de bola de gude, garota – dizia tia Dedé a uma Celina atenta, durante as longas conversas que ficaram comuns.
Tia Dedé não apenas se divertiu, como participou ativamente das sessões de leitura: fazia perguntas, propunha discussão, falava mal de personagens, pedia à Celina que tomasse nota do que debatiam sobre os dramas e reflexões do casal protagonista.
– Diabo de diálogo extenso e patético! Nada produtivo o que diz Ivan à Lúcia, não acrescenta nada. Tem excesso de divagação sobre a ametista, sem utilidade prática na história. O que você acha, Celina? Quero saber o que sai dessa cabecinha verde.
– O parágrafo anterior pede esse diálogo, tia Dedé, vamos retomar pra conferir.
– Anote, menina, anote...
A estimativa de uma hora e meia, no máximo duas horas para cada encontro, não foi cumprida. As tardes com tia Dedé não tinham teto para acabar. A velha senhora, arredia e aborrecida, mostrou-se envolvente e sedutora. Ocupou-se de alimentar o entusiasmo de Celina e provocar-lhe a curiosidade, promovendo verdadeiros colóquios literários, repletos de indagações, controvérsias, devaneios e a leitura das quinhentas e tantas páginas se estendeu por tempo maior que o previsto.
Celina tentou emendar outro livro, mas tia Dedé, sob pretexto de que precisaria decantar o volume de informação, despediu a moça com um ríspido “Depois...”. A dama da ranzinzice retornara ao seu lugar e deixou na jovem estudante uma semente em brotação. Celina mergulhou em mais créditos na universidade, as horas ficaram escassas e as visitas às idosas foram rareando. O trabalho voluntário também ficaria para depois.
A universidade e os sonhos de juventude estavam adormecidos lá atrás, naquele canto da memória em que se guardam imagens desfiguradas e nebulosas. Celina leciona e mora em outra cidade, trabalha em três turnos, precisa pagar contas e sobreviver do próprio trabalho. Ao chegar à sala de professores, encontrou um envelope no seu escaninho, remetido pela casa de repouso. “Como isso veio parar aqui?”. As mãos trêmulas e úmidas que rasgaram o papel, encontraram as notas do livro que ela leu para tia Dedé, em inúmeras folhas manuscritas. No fundo do envelope havia um pendrive, em que constava um arquivo de áudio. Era uma gravação de tia Dedé, pedindo que Celina lançasse uma nova edição de seu livro, Drusa de Ametista, revista e atualizada, agora depois de sua morte, com as devidas alterações anotadas e exaustivamente discutidas. A dedicatória exclusiva seria para Celina Ambrósio, “a menina dos olhos de bola de gude provou à Maria Zelda que é possível renascer na velhice”.