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11 de março de 2025

Sentei na pedra e chorei

Ia àquele consultório toda semana. Era uma obrigação imposta pela família “conversar com o doutor Gilson”, como se aquele palavrório sem sentido fosse me fazer mudar de rumo em plena crise de rebeldia-pós-casamento-precoce-mal-feito-recém-terminado.

A intuição nunca me enganou; a única pessoa em casa que tinha restrições ao doutor era eu. Ninguém sabia, mas passava longe daquele endeusamento, a idolatria, a confiança exagerada, só porque era profissional muito bonzinho, amigo da minha irmã. A cara dele não passava coisa boa; os olhos transmitiam algo estranho, que a compreensão não alcançava. Só sei que não gostava.

Até que um dia aconteceu. O inesperado esperado. Ele mostrou o que era de verdade, ou seja, um escroque.

Eu chorava sem trégua. A vida, aos dezenove anos, estava virada do avesso, e a família, sem entender o que ocorria com minha cabeça, empurrava-me para que aquele homem vil fizesse o papel de psicanalista, me ouvisse e dissesse coisas que me conduzissem ao que pensavam ser o caminho certo. Era educado, a voz baixa e suave, falava manso como qualquer ser bondoso ou que se faça de. O tom da voz saía meio rouco. Recebia-me de modo cortês, com abraço, dois beijos, sentava-se atrás da mesa e eu à frente, como numa consulta convencional.

Só que nesse dia minha fragilidade estava no ápice; não conseguia dizer nada; só chorava. Ele se levantou, se aproximou e tocou meu ombro.

- Vem cá. Você está precisando de colo.

Eu boba, ingênua como minha criação me fez ser, acreditei e aceitei o falso acolhimento. Ele recostou na maca e me puxou. Abraçou-me forte, inicialmente como um pai carinhoso. De repente, as mãos pesadas começaram a alisar minhas costas, de cima a baixo. Tensionei o corpo, pelo estranhamento. No mesmo instante em que respirou quente no meu pescoço, abaixo da orelha, as mãos desceram um pouco mais e pressionaram levemente meus quadris. Fiquei em choque, primeiro sem acreditar no que estava acontecendo e depois, sem saber como reagir. Afinal, ele era o médico da família, grande amigo, me conhecia desde criança.

Quando as mãos dele pressionaram mais forte, me puxando de encontro a ele, senti a realidade que não queria. Afastei-me e então vi, sob a calça branca de tecido fino, quase transparecer o pênis em completa ereção. Apartei-me por completo, peguei a bolsa pendurada na cadeira, a porta e corri. Não esqueço a expressão decepcionada, do tesão em máxima potência, interrompido.

Saí desnorteada pelo corredor do hospital. Não havia em quem confiar, com quem conversar. A família não alcançava o que ocorria comigo naquela idade, não era capaz de lidar com uma adolescência na sua forma mais conflituosa e entregara tais responsabilidades a outro. Eu, por minha vez, precisava crer nos meus e então, embora toda a confusão mental do momento, obedecia à ordem: - Vai conversar com o doutor.

Perdida. Mais que perdida fiquei vazia. Saí da porta do hospital, parei na calçada. Não era capaz de me concentrar no que precisava fazer. Tinha que ir embora. Pra onde? Pra casa? Que casa? Onde é minha casa? Quem vai me acolher agora? Pior: não havia a menor chance de revelar o que acontecera naquele consultório. Quem acreditaria? Para minha família, era Deus no céu e Gilson na Terra.

Sem mais uma alma pra pedir socorro, a única atitude que poderia tomar era mesmo voltar pra casa. Virei o corpo, avistei a delegacia de polícia. O ponto de ônibus era ao lado. Segui em frente, atravessei a rua; passava pelas pessoas sem vê-las. Estava tonta, a mente em turbilhão, não pensava de forma coerente, parecia alucinada. A visão de minutos atrás me dava ódio, asco, queria vomitar.

Parei em frente à porta da delegacia; as lágrimas saltaram, grossas. Olhei lá pra dentro, baixei a cabeça e segui. Já no ponto de ônibus sentei numa grande pedra, velha conhecida, e não me segurei. Chorei. Chorei muito. Solucei a ponto de chamar a atenção de outras pessoas.

- Moça, você tá passando mal? Precisa de ajuda?

Agradeci. Enxuguei o rosto. Disse que estava triste, de luto. Eles não sabiam que o luto era por mim. Chegou o ônibus e os trinta minutos do trajeto se tornaram a viagem mais longa da minha vida.

Jamais precisarei fazer esforço para lembrar o que ocorreu naquela manhã, naquele hospital, com aquele homem que aprendemos a chamar de médico, mas que pra mim não passou de mais um canalha que a sociedade fabricou com esmero. Apesar do nevoeiro que encobre a maioria de minhas memórias de adolescência, há fatos que marcam mais que nascimento e morte.

Trinta anos se passaram e pela primeira vez contei a alguém o que ocorrera. Foi uma catarse. Expus a raiva que senti da minha irmã e da minha mãe, desabafei o quanto de mágoa ainda carregava por terem, mesmo sem saber, me empurrado para o colo daquele médico escroto. Porém, os piores sentimentos que saíam do fundo do inconsciente eram por ele. Horror, nojo, ódio. Lembro a cara dele, o rosto, a língua presa, a voz rouca e sinto engulhos. Meu estômago se contorce.

Na sessão com a terapeuta tudo isso saiu de uma só vez, uma fala regada a muito choro e tristeza profunda. Saber que hoje estaria a centenas de quilômetros não me satisfazia. Por outro lado desejava estar cara a cara novamente para dizer tudo que estava engasgado, mas na verdade mesmo, preferia saber-lhe morto. Nunca desejara isso a ninguém, no entanto, morto é acabado e assim talvez me sentisse finalmente livre do passado repugnante.

O processo de matar alguém dentro da própria mente não ocorre em minutos, diante do terapeuta. É morte lenta, como ministrar doses mínimas de veneno, diariamente, até vê-lo definhar dia após dia. A cada dia imaginava matando-o de um modo diferente: por enforcamento, tiro, facada, empurrado de uma sacada do 21º andar, afogado, envenenado, surrado, capado. E me comprazia.

Até que um dia, no set terapêutico:

- Matei! Está morto, o maldito! E eu mesma sepultei pelado, branquelo, pálido, seco, sem sangue no corpo, sem caixão. Joguei-o no fundo de uma vala e deitei terra por cima, até não ver mais aquela cara e cabelos ruços. Eu matei! Está enterrado!

Meu corpo ficou leve, a mente livre, o passado apodrecendo embaixo do chão frio no meio do nada e eu liberta da lembrança da roupa branca com uma ereção quase a atravessar a calça transparente. Está morto.

Cheguei em casa, o telefone tocando. Era minha mãe.

- O doutor Gilson morreu hoje. Soubemos agora. Definhou lentamente de uma doença desconhecida até se sufocar sozinho e apagar de vez.

Jamais a vizinhança ouvira uma gargalhada tão alta, que chegou a ouvidos das gente de todos os cantos, com ecos em todas as partes.

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