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11 de março de 2025

Da janela

O verso da música martelava na mente, enquanto fumava um cigarro na sacada do apartamento, após uma xícara de café – “Ela se jogou da janela do quinto andar”. A letra de Renato Russo convidava o pensamento a questionar, a avaliar possibilidades. Alguém – quem? –, teria se lançado ao ar. Por quê? E o que mais? O que lhe acontecera depois? Nada preenchia o vazio da não resposta, da não continuidade, da expectativa.

Estatelara-se no cimento quente da calçada em pleno sol do meio-dia? Ou numa noite gelada, como a de hoje? “Dorme agora, é só o vento lá fora”. Dorme o sono da morte, o tal sono eterno que lhe prometeu a religião durante tantos anos?

Tentava imaginar o que haveria de semelhante nas vidas de mulheres que decidiam sair de cena, como a moça que se atirara da janela do quinto andar. Se seriam infelizes, humilhadas, rejeitadas, gordas demais, magras demais, odiadas, cansadas, feias, fracassadas.

Ela se jogou. Atirou-se ao voo sem retorno. Que deleite! Como sonhara com isso há tempos! Faltou-lhe coragem – ou covardia. “Para sair da vida é preciso muita coragem. Para preferir morrer é preciso ser covarde”, afirmou em voz alta, olhando seus pés descalços.

Recitava a letra diariamente, ouvia a mesma música sempre. Repetia para si o verso e se imaginava como num filme, a deslizar no salto para o nada, vestida numa camisola azul esvoaçante, a pressão do ar queimando-lhe a face e o grito pavoroso e alucinado de quem se entrega ao vazio da morte.

“Ela se jogou da janela do quinto andar”.

Olhou para baixo, dos pés para o lado de fora da sacada. Estava no sexto andar. Não havia mais alma perdida. O povo acorda cedo e sua angústia, sua vontade de ir, sem jamais precisar vir, era só sua, cria da dor de todos os dias e da solidão.

Os edifícios em silêncio, às escuras. Nem sinal das outras vozes de outras mulheres que comumente ouvia, em prantos, aos berros, em situação semelhante a sua, e que de repente calavam, após deixá-la aflita por longos minutos, às vezes horas, a ponto de se ajoelhar em prece por elas.

A imensidão da cidade cobria a linha do horizonte e lhe dava a dimensão da sua insignificância. Ninguém a conhecia, ninguém a enxergava, ninguém a escutava. Sequer no seu corredor havia amigos.

Dor ou fantasia, fantasia ou desejo, desejo ou loucura. Queria experimentar a sensação de se jogar à liberdade, ir, não voltar, sem se preocupar ao ponto final da sua única aventura.

A música parou de tocar e seus devaneios foram interrompidos. Atirou o cigarro com força, mas o vento o trouxe de volta. “Merda!”

Não queria acordar de manhã, não mais essa vez, passar por tudo de novo e de novo e de novo. Respirou fundo. Precisava decidir e decidiu.

“Vou fazer mais um café. Amanhã troco a fechadura da porta e aquele traste não volta mais aqui”.

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