Lenço amarrado à cabeça, chinelos de borracha e uma bolsinha minúscula com documento e uns trocados. Botou os pés fora de casa, sem intenção de voltar ao inferno diário do tráfico, da polícia arrombando portas e vidas, da pobreza sem esperança, do isolamento imposto pelo resto do mundo. Perdera o único filho para o crime e o marido para as drogas. Não tinha mais nada, não queria mais nada. Sem rota, sem plano, ganhou a rua e andou.
Tiroteio deixa um morto e cinco feridos. Três adolescentes são abatidos durante incursão de policiais no Morro da Piedade. Hermínia caminha, sem interromper os passos para um descanso. Segue em direção ao que chama “longe de tudo”. Um lugar em que jamais esteve, mas imagina e procura fora e dentro de si, enquanto se locomove rígida e segura. Grupo fortemente armado realiza falsa blitz e rouba carros para invadir a comunidade. Sua alma, sim, conhece a lonjura que busca, como se em sonho já a visitasse, como se a trouxesse de outras dimensões de si mesma.
Hermínia aperta a passada pois necessita se afastar do tormento que deixou para trás. Crê no fim da guerra, na libertação, nunca mais medo e sofrimento. Sem prever, avança no rumo das montanhas e sobe, agora devagar. A polícia ocupa todos acessos e prende cinco traficantes. Encontra sob as árvores um veio d’água e se abaixa pra matar a sede. Está exausta. Molha o rosto, as têmporas, a nuca. Olha adiante e vislumbra o caminho. Quer encontrar o que nunca viu, o que não sabe e não conhece. Retoma sua marcha à beira da estrada, os tornozelos tocando musgos crescidos entre galhos úmidos à sombra da mata. Grupo da polícia especial invade casa e mata uma mulher e dois filhos pequenos com tiros de fuzil.
Sem ver dia nem noite, a cada trecho que vence, experimenta a liberdade de apenas ser, enche os pulmões com vigor e expira seus temores, vê ao longe a cidade, ameaça um suspiro. O ruído do repuxo atrai Hermínia, que transpõe o limite da margem e adentra a mata. Raios de sol dançam entre as frestas das copas, salpicando a água do riacho de pequenos diamantes de luz. Hermínia se ajoelha. Chora e ri. Desconhece essa sensação estranha, ao mesmo tempo serena. Se emociona, descalça os chinelos e se entrega.
Moradores do Morro da Piedade não têm paz. Nesta madrugada um incêndio destruiu praticamente todos os barracos do lado leste da comunidade. Dados não oficiais informam até agora trinta e duas mortes e centenas de feridos. Moradores desalojados e desamparados não sabem para onde ir.
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