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29 de julho de 2025

Linguagem que desnuda a vida

Quando Annie Ernaux venceu o Nobel de Literatura, em 2022, e houve aquela excitação comum nesses momentos – “quem é?”, “de onde?”, “o que ela escreve?” – também fui atrás dos detalhes. A autora não era pra mim uma estranha, mas não havia ainda alcançado sua obra. Li reportagens, artigos, resenhas, assisti a vídeos. Sem saber por onde começar a leitura de Ernaux, aceitei a dica de iniciar por “Os anos”, no entanto não me encaixei. Deixei o livro de lado e adiei o “projeto Ernaux” pra um outro tempo.

Poucos dias depois, outra dica: “Já leu ‘A escrita como faca e outros textos’? Pode ser um bom caminho pra entender a escritora, antes de encarar a obra’”. Deu certo. Nesse livro, a própria Annie Ernaux detalha toda a sua trajetória numa entrevista ao escritor francês Frédéric-Yves Jeannet, em quem ela responde como quer, quando quer, no tempo dela (a entrevista levou meses pra ser concluída). Com precisão e uma sinceridade surpreendente, ela explica seu modo de produzir e fala sobre o que chama de “postura de escrita”, seu método pessoal de juntar o social e o individual, sem prejuízo algum. Terminada a leitura de “A escrita como faca...”, desisti temporariamente de “Os anos” e resolvi começar pelo começo. A partir de uma lista em que reuni os principais títulos, iniciei pelo mais antigo, “O lugar”, de 1984. Foi assim que devorei dez títulos seguidos, sem interrupção – e quase sem fôlego.

A francesa Annie Ernaux nasceu em 1940, em Lillebonne, na Normandia. Cresceu em Yvetot, numa família de origem pobre. Estudou na Universidade de Rouen-Normandie e na Universidade de Bordeaux, onde se formou em literatura francesa. O livro “Os anos”, de 2008, é considerado um dos mais importantes, porque oferece todo o panorama da sociedade francesa do pós-guerra até os dias atuais, no pano de fundo da história pessoal da autora. Mas é no aprofundamento dessa história, ao ler as outras obras, e na ordem de publicação, que aparecem as minúcias.

Ernaux aborda temas como classe social, gênero, divórcio, câncer, aborto, relações familiares, pobreza, sempre de modo direto, sem floreios, sem hesitação ou constrangimento. Uma escrita marcada pela objetividade e pela ausência de sentimentalismo exagerado. Seus livros são curtos, extremamente impactantes, oferecem uma visão profunda sobre a condição humana e as estruturas sociais que moldam nossas vidas. Algumas das obras mais conhecidas incluem “Uma mulher” (1988), “Paixão simples” (1991), “A vergonha” (1997), “O acontecimento” (2000) e “A outra filha” (2011), editadas no Brasil pela Fósforo.

“Nunca pensei que, por ser menina, mulher, e nascida em uma família popular, não pudesse alimentar a ambição de escrever. Era levada pela certeza de que, antes de tudo, isso dependia de desejo e vontade.”

Considerada uma das autoras mais importantes da literatura contemporânea, Ernaux criou um estilo de escrita, que chama de autossociobiografia, na qual explora memórias pessoais para refletir sobre questões sociais e históricas, combina elementos da autobiografia com análise sociológica e histórica do contexto em que suas experiências ocorreram. Ela não apenas narra sua vida, mas também examina como suas vivências refletem questões coletivas. Suas obras acabam por transcender o relato pessoal e se tornam um espelho da sociedade.

Em "O Lugar", por exemplo, Annie Ernaux conta a vida do pai e, ao mesmo tempo, analisa as relações familiares e os conflitos de classe na França. Em "O Acontecimento", ela relata a própria experiência com um aborto clandestino nos anos 1960. Testemunho poderoso sobre os desafios enfrentados por mulheres que desejam interromper uma gravidez em uma sociedade que as condena por isso, traz detalhes minuciosos sobre todo o processo pelo qual passou, algo que jamais vi em toda a minha experiência de leitura, tão detalhado e ao mesmo tempo tão frio e duro.

“O pior da vergonha é que achamos que somos os únicos a senti-la.”

Annie Ernaux também não esconde que teve vergonha da pobreza em que viveu na infância e esse sentimento é revelado e analisado em “A vergonha”, em que descreve como sua origem humilde e sua posição social fizeram com que se sentisse deslocada, especialmente depois de ver seu pai tentar matar sua mãe, em 1952. Esse fato marcou a percepção da autora sobre a própria família e sua condição social, criando um sentimento de inadequação e vergonha que a acompanhou por muitos anos. E a educação formal acabou por distanciá-la da família, tornando-a consciente das diferenças de classe e das barreiras sociais que os separavam dos grupos mais privilegiados.

Já “Paixão simples” é um livro impactante porque explora a intensidade e a vulnerabilidade da paixão de forma crua e sem filtros. Nesse livro, Ernaux narra sua experiência com um amante casado, revelando como essa relação consumiu sua vida, sua rotina e seu trabalho, além da sua percepção do tempo. Ela conta que, enquanto estava apaixonada, o tempo não seguia uma lógica cronológica convencional. Cada minuto longe do amante era uma intervalo angustiante. Descreve a longa espera por um telefonema que marcaria um encontro, a expectativa torturante, a obsessão por uma roupa especial que usaria com ele (e para ele) e a devoção quase cega, sem tentar justificar ou romantizar seus sentimentos. Uma reflexão sobre desejo, dependência emocional e a natureza efêmera das relações em abordagem sem nenhum pudor.

O impacto de Annie Ernaux na literatura contemporânea é profundo e multifacetado. O estilo único influenciou autores e leitores ao se depararem com essa nova perspectiva que transforma experiência pessoal em reflexão sócio-histórica. A narrativa clara e incisiva desafia convenções literárias tradicionais, tornando suas obras acessíveis e impactantes. Além disso, a escrita de Annie Ernaux tem um forte viés feminista, questionando normas sociais e dando voz a experiências muitas vezes marginalizadas.

Terminada a primeira lista, já há uma segunda sendo preparada para encarar uma nova etapa das leituras de Annie Ernaux. A escrita é fluida, os livros são curtos, cada mergulho é profundo, porém breve. Longa é a reflexão, que traz muitas oportunidades de compreensão de outras perspectivas da vida e do mundo. 

“(...) Pois, para além de todas as razões sociais e psicológicas que pude encontrar naquilo que vivi, existe uma da qual estou mais certa que tudo: as coisas aconteceram comigo para que eu as conte. E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros.”

 

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