Pego meu livro, caderno, lápis, caderno e caneta. Sento no
sofá da sala, onde o ar-condicionado opera em 17º e o ventilador sopra direto
no meu pescoço, área do corpo que ferve após a menopausa. É domingo e a onda de
calor no Sudeste do Brasil cozinha os miolos.
Abro o livro sobre as pernas e olho pela janela. Ainda
transpiro, após o almoço na cozinha abafada, e respiro aliviada pelo privilégio
de ter uma casa ampla, morar numa área muito arborizada próxima à Mata da
Cicuta e ter aparelhos que aliviam a impressão de derretimento de corpo e alma.
Impossível não pensar em quem não tem os mesmos privilégios,
ao menos uma morada ventilada, um ventilador barulhento. Três da tarde, céu
azul límpido, um sol pra cada um, lindo dia de quentura extrema e de muito
sofrimento para muitos lá fora.
Lembro de uma das visitas que fiz, quando acompanhava a
equipe de atenção domiciliar a pacientes terminais, para escrever meu livro
“Alguém pra segurar a minha mão”. Bairro periférico, quase hora do almoço,
quase o mesmo calor de hoje. Numa casinha de tijolos, quintal apinhado de
entulhos de todo tipo e cheiro de sujeira, em um quarto minúsculo sem janelas
estava a paciente. Uma senhora de quase oitenta anos, acabava de chegar de uma
internação. Talvez a última. Uma cama, uma mesinha improvisada, uma cadeira
para o médico sentar.
Dona Cida, assim vou chamá-la aqui, era diabética, cardíaca,
hipertensa e sofria as sequelas de tudo junto. Falava aos suspiros e era
traduzida por uma pessoa da família. Suava. Como suava! O médico perguntou se
teve febre e como resposta ouviu que não havia dinheiro pra comprar termômetro.
Não cabiam todos da equipe dentro do quarto e mesmo se coubesse, nenhum de nós
suportaria o abafamento.
Era o que tinha e era o possível, me disse o médico. A vida
se esvaindo em meio a condições que não ajudavam, ao contrário. A morte vai
chegar mais rápido, pensei. Como garantir a dieta adequada, remédios, roupa
limpa e trocada todos os dias, ar respirável. Percebia-se que ninguém na casa
tinha conhecimento para os cuidados mínimos.
Foram muitas as famílias que conheci em cenários semelhantes
ou piores. Na experiência como repórter, infelizmente testemunhei pobreza
extrema, famílias enormes compartilhando um cômodo, sem ventilação, muitas
vezes sem banheiro, sem o básico, sem nada. Isso já faz uns trinta anos e
infelizmente tudo continua do mesmo jeito.
O sentimento de desânimo me desaba, no momento em que estudo,
leio, escrevo, aproveitando o domingo tranquilo pra colocar leituras em dia,
anotar dados de pesquisas para um artigo, fresquinha no sofá da minha casa, atendendo
a demandas do ofício.
E a pergunta que sempre me vem à mente é: “Pra quê?”
É luta atrás de luta, “êita atrás de êita”, sempre na
tentativa de mudar algo, melhorar aqui, avançar lá, mas a canícula que hoje nos
rouba o conforto vai piorar. O clima está em polvorosa. Há muito tempo algo de
concreto deveria estar em curso para frear o aquecimento tão anunciado e que
agora nos acomete com recordes de temperaturas altas, tempestades, ciclones,
furacões, incêndios florestais e até urbanos. E na outra ponta da cegueira, da
negação, dos interesses espúrios que negligenciam as necessidades, continuam lá
as famílias das donas Cidas, na mesma indignidade de sempre. Preciso respirar
fundo e tentar me concentrar na leitura, pois há compromissos a cumprir. O que
posso fazer individualmente, faço. Mas não depende do “se cada um fizer sua
parte”. É muito mais que isso, o buraco é bem mais embaixo e como ouço dizer
por aí, “isso não vai dar bom”.
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