Ainda não havia despertado o interesse pela obra de Márcia
Tiburi, até entrar no Clube de Leitura da Manuela D’Ávila, que este ano propôs
um estudo do feminismo, com base em livros teórico-filosóficos e de ficção. O
primeiro título do programa: “Com os sapatos aniquilados, Helena avança na
neve”. Um soco no estômago. Um, não. Vários.
Muito intenso e provocador, da primeira à última página, conta
a história de Helena, brasileira que se muda para Paris e passa a viver no
apartamento de Chloè, mulher solitária, de passado e presente dolorosos. A
trama avança misturando as histórias das duas personagens, até que se
entrelaçam e então compartilham suas dores e traumas e solucionam seus dramas
juntas.
Parece trivial, mas para abordar temas como feminicídio,
violência patriarcal e de que forma as instituições como família, igreja e
justiça endossam essas práticas, Márcia Tiburi nos leva ao fundo do poço, junto
com Helena, heroína sofrida, fria e assassina. A narrativa é concebida para lançar
olhar crítico e implacável sobre as estruturas de poder e pra isso lança mão de
alegorias das violências enfrentadas por mulheres em diferentes épocas e
lugares.
Helena sofre um trauma na infância, ao testemunhar a morte
da mãe, perpetrada pelo padrasto, a quem chamava de pai. Desse momento em
diante, empreende uma busca por sobrevivência, ao mesmo tempo em que passa por
todo tipo de abuso, porém carrega consigo a coragem de não deixar barato. Sai
pela vida a fugir da violência masculina e atinge seus objetivos também de
forma violenta.
Não se trata da narrativa de uma personagem comum. Repleto de
metáforas que se aproximam do realismo fantástico, apresenta uma Helena mítica,
ou mística, misteriosa, estranha, sua subjetividade não é facilmente acessível.
É uma personagem que está sempre no limiar, não se sabe qual será o próximo
passo. Como todas nós, que vivemos perseguidas e ameaçadas, Helena é uma
sobrevivente. E age de forma tão violenta e ao mesmo tempo tão natural, que nos
leva a questionar “por que concordo com tudo isso? Por que toda essa
brutalidade me faz bem?” E a gente se vê nesse lugar de repugnância e de
regozijo, um sentimento de vingança vibrando em conflito com a culpa por
comemorar cada tiro.
A morte permeia toda a narrativa. Mulheres que matam não só
para se defender, mas para acabar com o apagamento que sofrem, para chegar lá
na frente, mesmo sem saber que lugar é esse. Necessitam se manter vivas,
precisam resistir. Buscam espaço onde possam existir sem medo, embora esse
espaço não exista; elas caminham com o medo, enfrentam o medo, matam o medo e o
que lhes amedrontam. E seguem.
Depois de suas andanças e fugas, Helena chega a Paris e
encontra Chloè, que a abriga em sua casa. Chloè é feminista, militante,
enfrenta uma luta interna por não se conformar com a morte da filha, declarada
como suicídio, mas ela tem certeza de que foi feminicídio praticado pelo
marido. E acompanha de olhos bem abertos a saga da neta médica, casada com um abusador
agressivo, trabalha e sustenta casa e se vira em plantões e rebate a avó que se
empenha para lhe abrir os olhos, enquanto tenta se convencer de que é assim
mesmo, ele é assim mesmo, todos são assim mesmo.
Helena espalha seu sofrimento nas tintas, desenha lindamente
em traços descobertos por Chloé, que é especialista em arte, trabalha no Louvre,
atravessa quadros, rouba telas. Cada uma a seu jeito, têm um desejo em comum:
enfrentar o patriarcado e suas imposições. E aqui Márcia Tiburi nos presenteia
com um grande diferencial: as mulheres sofrem, são abusadas, mas permanecem
silenciosas e acuadas no lugar do sofrimento. Elas reagem, de forma
assustadora, como só vemos nos livros escritos por homens, em que os homens são
os protagonistas e heróis, ovacionados em sua desumanidade e está sempre tudo
bem. A história da masculinidade colocou as coisas nesse patamar e ainda
seguimos esse fluxo, quase no automático.
A afirmação acima é de Edgar Allan Poe, escrita em 1846, no
ensaio “A filosofia da composição”, em que explica como criou o poema “O
corvo”. Para dar o tom de beleza ao texto, não hesitou em optar pela imagem e
descrição de uma mulher morta. A violência contra as mulheres está encrustada
na história das artes, como se vê, no entanto Márcia Tiburi faz exatamente o
oposto.
A pesquisadora Eurídice Figueiredo, em “Por uma crítica
feminista – leituras transversais de escritoras brasileiras” cita Virginia
Woolf, sobre um exercício mental que propõe “imaginar como as mulheres deveriam
escrever sobre suas vidas, narrando suas experiências que nunca foram enfocadas
pelos escritores do passado e não tentando imitar a escrita dos homens”. E
segue o raciocínio ao se referir a Nelly Richards: muitos textos escritos por
mulheres, “por mimetismo passivo ou por subordinação filial à autoridade
paterna da tradição canônica”, reproduzem os modelos de subjugação masculina.
Márcia inaugura no meu histórico de leituras a personagem
mulher dona da ação e da reação, que é violenta, que mata. Nesse livro, as
mulheres sofrem, caem e levantam atirando. Com os olhos acostumados à
literatura escrita por homens e à escrita por mulheres, mas ainda atrelada ao
modo masculino de escrever e estruturar suas histórias, esbarrei no ceticismo no
desfecho, apontei certa ausência de lógica nas cenas finais, algo
cinematográfico, verossímil se encenadas por homens – “mulheres fazerem isso?”,
porém despertei rápido: por que não?
“Com os sapatos aniquilados...” evidencia que que uma mulher
é, sim, capaz de se defender com inteligência, sagacidade, frieza. Que também
pode tratar seu algoz como lixo, matar e jogar fora, no melhor estilo “deixar
pra lá”. Importante destacar que os personagens masculinos não são nomeados.
São o padrasto, os irmãos, o policial, o marido, o pastor, o caminhoneiro...
Afinal, nenhum merece nome porque na verdade são nada, além de seres apenas
nascidos.
“(...) a morte, pois, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo.”
Publicado originalmente no Blog Hora do Sabbat, em abri/2025
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