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9 de julho de 2025

Entre a repugnância e o regozijo

Ainda não havia despertado o interesse pela obra de Márcia Tiburi, até entrar no Clube de Leitura da Manuela D’Ávila, que este ano propôs um estudo do feminismo, com base em livros teórico-filosóficos e de ficção. O primeiro título do programa: “Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve”. Um soco no estômago. Um, não. Vários.
 
Muito intenso e provocador, da primeira à última página, conta a história de Helena, brasileira que se muda para Paris e passa a viver no apartamento de Chloè, mulher solitária, de passado e presente dolorosos. A trama avança misturando as histórias das duas personagens, até que se entrelaçam e então compartilham suas dores e traumas e solucionam seus dramas juntas.
 
Parece trivial, mas para abordar temas como feminicídio, violência patriarcal e de que forma as instituições como família, igreja e justiça endossam essas práticas, Márcia Tiburi nos leva ao fundo do poço, junto com Helena, heroína sofrida, fria e assassina. A narrativa é concebida para lançar olhar crítico e implacável sobre as estruturas de poder e pra isso lança mão de alegorias das violências enfrentadas por mulheres em diferentes épocas e lugares.
 
Helena sofre um trauma na infância, ao testemunhar a morte da mãe, perpetrada pelo padrasto, a quem chamava de pai. Desse momento em diante, empreende uma busca por sobrevivência, ao mesmo tempo em que passa por todo tipo de abuso, porém carrega consigo a coragem de não deixar barato. Sai pela vida a fugir da violência masculina e atinge seus objetivos também de forma violenta.
 
Não se trata da narrativa de uma personagem comum. Repleto de metáforas que se aproximam do realismo fantástico, apresenta uma Helena mítica, ou mística, misteriosa, estranha, sua subjetividade não é facilmente acessível. É uma personagem que está sempre no limiar, não se sabe qual será o próximo passo. Como todas nós, que vivemos perseguidas e ameaçadas, Helena é uma sobrevivente. E age de forma tão violenta e ao mesmo tempo tão natural, que nos leva a questionar “por que concordo com tudo isso? Por que toda essa brutalidade me faz bem?” E a gente se vê nesse lugar de repugnância e de regozijo, um sentimento de vingança vibrando em conflito com a culpa por comemorar cada tiro.
 
A morte permeia toda a narrativa. Mulheres que matam não só para se defender, mas para acabar com o apagamento que sofrem, para chegar lá na frente, mesmo sem saber que lugar é esse. Necessitam se manter vivas, precisam resistir. Buscam espaço onde possam existir sem medo, embora esse espaço não exista; elas caminham com o medo, enfrentam o medo, matam o medo e o que lhes amedrontam. E seguem.
 
Depois de suas andanças e fugas, Helena chega a Paris e encontra Chloè, que a abriga em sua casa. Chloè é feminista, militante, enfrenta uma luta interna por não se conformar com a morte da filha, declarada como suicídio, mas ela tem certeza de que foi feminicídio praticado pelo marido. E acompanha de olhos bem abertos a saga da neta médica, casada com um abusador agressivo, trabalha e sustenta casa e se vira em plantões e rebate a avó que se empenha para lhe abrir os olhos, enquanto tenta se convencer de que é assim mesmo, ele é assim mesmo, todos são assim mesmo.
 
Helena espalha seu sofrimento nas tintas, desenha lindamente em traços descobertos por Chloé, que é especialista em arte, trabalha no Louvre, atravessa quadros, rouba telas. Cada uma a seu jeito, têm um desejo em comum: enfrentar o patriarcado e suas imposições. E aqui Márcia Tiburi nos presenteia com um grande diferencial: as mulheres sofrem, são abusadas, mas permanecem silenciosas e acuadas no lugar do sofrimento. Elas reagem, de forma assustadora, como só vemos nos livros escritos por homens, em que os homens são os protagonistas e heróis, ovacionados em sua desumanidade e está sempre tudo bem. A história da masculinidade colocou as coisas nesse patamar e ainda seguimos esse fluxo, quase no automático.
 

“(...) a morte, pois, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo.”

 
A afirmação acima é de Edgar Allan Poe, escrita em 1846, no ensaio “A filosofia da composição”, em que explica como criou o poema “O corvo”. Para dar o tom de beleza ao texto, não hesitou em optar pela imagem e descrição de uma mulher morta. A violência contra as mulheres está encrustada na história das artes, como se vê, no entanto Márcia Tiburi faz exatamente o oposto.
 
A pesquisadora Eurídice Figueiredo, em “Por uma crítica feminista – leituras transversais de escritoras brasileiras” cita Virginia Woolf, sobre um exercício mental que propõe “imaginar como as mulheres deveriam escrever sobre suas vidas, narrando suas experiências que nunca foram enfocadas pelos escritores do passado e não tentando imitar a escrita dos homens”. E segue o raciocínio ao se referir a Nelly Richards: muitos textos escritos por mulheres, “por mimetismo passivo ou por subordinação filial à autoridade paterna da tradição canônica”, reproduzem os modelos de subjugação masculina.
 
Márcia inaugura no meu histórico de leituras a personagem mulher dona da ação e da reação, que é violenta, que mata. Nesse livro, as mulheres sofrem, caem e levantam atirando. Com os olhos acostumados à literatura escrita por homens e à escrita por mulheres, mas ainda atrelada ao modo masculino de escrever e estruturar suas histórias, esbarrei no ceticismo no desfecho, apontei certa ausência de lógica nas cenas finais, algo cinematográfico, verossímil se encenadas por homens – “mulheres fazerem isso?”, porém despertei rápido: por que não?
 
“Com os sapatos aniquilados...” evidencia que que uma mulher é, sim, capaz de se defender com inteligência, sagacidade, frieza. Que também pode tratar seu algoz como lixo, matar e jogar fora, no melhor estilo “deixar pra lá”. Importante destacar que os personagens masculinos não são nomeados. São o padrasto, os irmãos, o policial, o marido, o pastor, o caminhoneiro... Afinal, nenhum merece nome porque na verdade são nada, além de seres apenas nascidos.

Publicado originalmente no Blog Hora do Sabbat, em abri/2025
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