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5 de julho de 2025

A mãe da Fatinha morreu

As panelas chiavam nas cozinhas, quando a notícia correu a vizinhança. A mãe da Fatinha morreu. Quem privava de alguma intimidade com a família se apressou a acudir marido, filhos, sogra, passar um café. Os que ficaram boquiabertos em suas casas se postaram em rezas, em vozes que entremeavam “Deus ajude”, “Deus console”, “Deus receba”, “que tragédia, meu Deus”. Outros foram aos portões, a ver de longe o movimento. Fogões apagados, cozidos interrompidos, arroz queimado. E a mãe da Fatinha nem chegou a colocar a comida no fogo.

Saiu para as compras, levando sua bolsinha de mão e dentro dela a lista do que precisaria para o almoço. Desceu a rua que desembocava na porta do mercado, parou pra dar uma olhadinha nas bancas de frutas, verduras e legumes, enfileiradas do lado de fora. Pegaria o que precisasse antes de entrar. Com a calma e simpatia de sempre, cumprimentou um funcionário aqui, uma conhecida ali, passeou pelas gôndolas a encher sua cesta. No balcão do açougue pediu zelo com o corte da carne, bem bonita, vistosa e limpinha. E não esqueceu do Mineirinho que a Fatinha adorava.

Depois de parir cinco filhos homens, Fatinha chegou para ser o dengo da mãe. Mimos, chamegos, trato diário e caprichado nos longos cabelos ruivos. Bateu boca com o marido pra dar nome à criança, nascida menina pela graça de Nossa Senhora de Fátima, a quem tanto pediu tal bênção. Fatinha cresceu diferente, recusou vestidos, gostava de shorts, regata e kichute, os irmãos criticavam, o pai grunhia ao vê-la jogando bola na rua, mas a mãe era só amor. Já a minha mãe não deixava brincar com a Fatinha. “Não é companhia pra você”, dizia, sem explicar o motivo.

Todos os domingos o almoço era o momento único da semana pra juntar a família, comida diferente da rotina, risadas à mesa, assistir ao Qual é a Música no início da tarde com as barrigas estufadas. Para a mãe da Fatinha era um dia pra lá de especial. Sua caçula fazia quinze anos. Preparou a lista para a refeição preferida da filhota: lagarto redondo recheado com linguiça, maionese de legumes, macarrão. Foi o que se espalhou pelo asfalto na frente do mercado, logo que a mãe da Fatinha deu o primeiro passo para atravessar a rua. Ela não viu o carro vindo de trás da caminhonete parada em fila dupla e voou. Voaram as batatas, cenouras, cebolas, maçãs, azeitonas. O Mineirinho rolou para o outro lado da pista espumando à pressão. Embaixo da caminhonete, dois caramelos já disputavam o lagarto redondo e a linguiça, mal o corpo magro da mãe da Fatinha encontrou o chão. Tão disforme que não sobraria nada, caso lhe sobrasse vida.

De longe dava pra escutar os gritos da Fatinha chamando pela mãe; a rua inteira escutou. Tão querida, tão prestativa, tão amável, dava a vida pela filha... Baixaram as músicas, não se ouviram as risadas às mesas, nem a voz do Silvio Santos ecoando das TVs, não teve o churrasco da mãe da Vanessa, vizinha de frente da mãe da Fatinha.

Naquele tempo os mortos eram velados em casa. Da calçada do outro lado era possível ver o caixão na sala, embaixo da velha lâmpada incandescente pendurada pelo fio e rodeado por sei lá quantas pessoas. Fatinha destroçada. O tanto de gente que passou por ali, virou a noite, chorou com os filhos, provava o quanto a mãe da Fatinha era querida. Quintal cheio, calçada cheia, gente que não parava de chegar.
No enterro, logo cedinho, vi de perto o caixão baixar a sepultura, Fatinha ajoelhada em cima do monte de terra vermelha, as mãos sobre a terra vermelha, os olhos vermelhos. Falava sozinha, falava com a mãe, enquanto em volta rezavam a última oração, entoavam os últimos cânticos. Do lado de cá da cova, observava Fatinha, agora sem mãe. Fios do cabelo colavam à pele do rosto, ao suor, às lágrimas. Rosas atiradas, terra sobre a tampa do caixão e Fatinha agora gritava “Eu queria estar lá dentro com ela! Eu queria! Queria estar lá dentro com ela, ir embora com ela!” e várias mãos a puxavam pelo braço, chamavam seu nome, ela arrastada pra trás, o corpo sem forças, desfalecendo.

Há quase cinquenta anos esses gritos ecoam na minha memória, junto à sequência de imagens e rezas e gritos e sepulturas feias e malcuidadas no velho cemitério público da cidade. E não tenho certeza se realmente estava lá, porque minha mãe jamais me deixaria ir ao enterro da mãe da Fatinha.

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