Queria dizer que o maior e principal desafio é ser mulher. Já li muitos livros de autores famosos em que falam sobre como escrevem, dão dicas, criam verdadeiras oficinas impressas, relatam suas rotinas. Impressiona a maioria dessas publicações serem escritas por autores homens. Um dos que mais me chamou a atenção foi “Romancista como profissão”, do Haruki Murakami. O escritor japonês detalha sua rotina diária: corre sei lá quantos quilômetros, se alimenta assim e assado, escreve xis horas por dia, lê mais xis horas por dia. Pergunto: quem faz o café desse ser? Quem faz o almoço? Quem lava o banheiro, as cuecas e as roupinhas suadas das corridas diárias?
Uma mulher, para ser escritora, antes de qualquer outra decisão tem que ter muita coragem pra encarar o “você não tem competência pra isso”, “você não pode”, “isso não é profissão de mulher” (sim, ainda se escuta isso no século 21), “seu trabalho não é bom o bastante” e por aí vai. Se optar por não casar e não ter filhos já é um bom começo, porém infelizmente não é o caso da maioria.
Relato agora um exemplo de uma escritora, que vou chamar apenas de Escritora:
Nasceu numa família que valorizava a arte dos outros. Em casa, arte não seria nunca aceita como profissão. Para as filhas mulheres, então, nem pensar. Como destino comum a muitas de nós, Escritora casou, teve filho e anotava algumas coisas pra si. À época até arriscava umas crônicas. Tempos depois de casada, ouviu do marido, em alto e bom som: “Quem escreve nesta casa sou euuuuu!”. A essa altura o casamento já não era casamento.
Outro grande desafio a ser vencido por Escritora foi a própria família, para quem seu desejo e futura realização jamais seriam valorizados. Aprenderia a conviver e a aceitar isso sem mágoa muito mais tarde. Já separada e sozinha com o filho, trabalhava fora, cuidava de filho pequeno, fazia almoço, lanche, janta, lavava roupa, filho no banho, filho pra escola, louça, casa... e ainda assim conseguia se sentar em alguma hora do dia pra escrever. Numa dessas, a mãe ligou:
- Tá muito ocupada?
- Tô escrevendo, mãe.
- Ah, então eu posso falar...
E era um blá-blá-blá interminável, de assuntos nada urgentes, que para Escritora nem eram assuntos. Também muito mais tarde ela aprendeu que se quisesse escrever mesmo, uma das coisas que precisaria aprender seria mentir para a mãe nesses momentos. Deu certo.
Quando Escritora já havia alcançado algum conhecimento do público, foi convidada para ministrar uma oficina de crônicas numa bienal, cujo nome era de um escritor brasileiro muito conhecido. Vou chamá-lo aqui de Escritor Brasileiro. Feliz da vida com o reconhecimento e com o cachê bonito que receberia, chegou à casa da mãe contando a novidade.
- Mãããe! Fui convidada pra ministrar uma oficina de crônicas na Bienal Escritor Brasileiro!
E foi imediatamente interrompida pelo irmão:
- E você por um acaso sabe quem é Escritor Brasileiro?
A mãe deu um sorrisinho de canto de boca. Jamais contrariou
ou permitiu que o filho fosse contrariado. Ficou por isso, porque Escritora
também jamais daria uma resposta atravessada ao irmão.
Escritora ainda viveria outros momentos marcantes com pessoas da família, mas encerro o relato com mais um episódio envolvendo a mãe. Aconteceu quando ela contou sobre a pesquisa que estava fazendo para escrever um livro de tema muito difícil, tabu, pesado.
A mãe:
- Você sabe que que não vai conseguir fazer isso, né? Eu te conheço. Esse assunto não é pra você.
- É você quem não me conhece e nem quer conhecer - respondeu
em pensamento.
A mãe jamais leu um livro da filha Escritora.
Desafios, meus amigos, não começam no pegar a caneta e escrever. Não começam na dificuldade de transformar ideias em textos, crônicas, crônicas, contos, romances ou o que for. Não começam na necessidade primária de ler muito para escrever bem, muito menos em dedicar dias e noites em pesquisas para desenvolver uma história. Para uma mulher, pobre, de família conservadora que jamais vai apoiar sua vocação, o maior desafio é ter determinação, ter a audácia de passar por cima dos nãos e ir adiante. O resto vem.
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