Itamar Vieira Júnior ambienta Torto Arado num desses cantos
e descreve uma saga que se repete por aqui há muitas gerações: a das famílias
de negros, que permaneceram pobres e segregados, prisioneiros da falsa
liberdade conquistada com a abolição.
Saltam aos olhos o chão de terra, a roça, a mata, o céu, o
balde de água, o casebre de barro, a chuva, a seca, o trabalho escravo, em
troca de um teto roto para abrigar o corpo depois da lida. O suor no rosto, o
dorso curvado, a cabeça baixa, as mãos calejadas, as vistas turvas, os pés
descalços e inchados, o sangue escorrendo, a carcaça fria. A fome, as perdas, a
humilhação engolida, o grito de dor agarrado na garganta, a miséria da falta de
instrução.
Muitas das tragédias que fazem e sempre fizeram parte do
cotidiano das populações invisíveis do país, são vividas pelos personagens. Famílias
que saíram em busca de sobrevivência e tiveram que sustentar suas demandas se
arrastando de um lado a outro, até encontrar lugar para trabalhar, garantir um
terreiro para plantar e comer o que o sol, a chuva e o patrão permitissem. Em
Torto Arado elas aparecem embaixo de um céu que impõe seu peso, seu poder de
vida e morte, seja azul iluminado, nublado ou derrubando água, revelando o
tanto que essa gente viveu (e vive) a nu na vida, entregue à vontade de Deus. E
que só Deus conhece.
O que os protege das angústias da vida é a religiosidade,
apresentada de modo impecável por Itamar. O sincretismo que mistura as crenças
numa só, com seus santos católicos, orixás, atabaques, dança e rodopio; a
comunidade que sobrevive com a ajuda de curador-rezador. Encantadoras as descrições
do jarê, da festa em homenagem à Santa Bárbara, ou Iansã, da convivência e do
respeito aos espíritos e a presença constante do invisível entre os
trabalhadores de Água Negra. É na religiosidade e na fé que se voltam e se
persignam, para resistir na labuta e sofrer com dignidade, cultivando a crença
nos intermediários do Altíssimo, nos guias, nos guardiões, para aquecer o
coração, acalmar a alma, e reunir força para prosseguir de pé.
E no fim das contas são eles, os protetores ocultos, os que
abençoam, que livram dos males e das ameaças constantes; e os salvam por meio
de seus próprios corpos.
(Texto publicado originalmente em 2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário