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14 de maio de 2012

Era só pra comprar um pacote de ração


Entrei na loja e ele estava segurando uma criança sentada em cima do balcão. Cabelos totalmente brancos, olhos azuis. O menino, de cerca de um ano, pele muito branca e de olhos também azuis, grandes e bem vivos. Pedi o que precisava e aquele senhor prontamente me atendeu, deixando o bebê aos cuidados de outra vendedora. Quando ele se retirou, o menino começou a choramingar, ao que a mulher logo interveio: “Calma, espera um pouquinho só que o papai já volta”. Não me espantei; apenas ri por dentro, pelo meu engano em pensar que se tratassem de avô e neto. Qualquer pessoa no meu lugar pensaria a mesma coisa de imediato.

Atravessei para o outro lado para passar o cartão, de onde aquele senhor ficou brincando com o garoto – “Olha o papai aqui!” – para que parasse de choramingar. Eu observava tudo calada, mas, sabe-se lá porque, ele não se contentou com meu silêncio e disparou a falar, meio hesitante e ao mesmo tempo insistente: “Ele é meu filho. Quando a gente tem filho assim, depois de certa idade, fica meio bobo, você está vendo, né? Sabe, já tenho três filhos adultos, minha filha mais velha tem 36 anos e tenho duas netas. Este meu filho aí já nasceu tio. E eu, tenho 60 anos! Um homem depois que fica viúvo não vive sozinho por muito tempo, sabe? Três anos e já é muito. Olha ali, aquela é minha mulher, a mãe deste garotão. Eu já não precisava mais ter filho, mas ela queria ser mãe...”

A mulher a minha frente deveria ter em torno de 30 anos, bonita, simples, quieta, simpática, com a felicidade saltando dos olhos. Pareceu-me o alento à velhice começada a chegar, a solução para o abandono da viuvez, a ocupação do ninho vazio, certa esperança de que o fim ainda pode estar bem longe. E alegria. Foi o que mais me chamou a atenção naquele olhar tão azul. Por minha vez disse nada, perguntei nada; apenas sorri e aquiesci àquela necessidade de me explicar sua realização, tardia para muitos, porém para ele, um fio de vida, um pouco mais de vida pulsante dentro e fora dele.

Quantas pessoas conheço que carregam preconceito contra diferenças de idade entre casais. Pode parecer piegas, pois há quem pense que falar disso é pra lá de piegas, mas quem é que pode torcer o nariz para a felicidade daquele homem? Quem tem o direito de apontar o dedo? Quem pode recriminar aquela jovem mulher por amar aquele senhor? Até me sinto ridícula ao levantar a questão, falar de amor... ah, que porre..! No entanto saí da loja satisfeita por tudo o que vi e ouvi. Um feliz encontro. Ou reencontro. É uma lástima que ainda haja quem não crê no sentimento verdadeiro entre pessoas de idades tão distantes. Que pessoas que se gostam possam construir algo, apesar de qualquer diferença.

Aquele senhor ainda saiu comigo, colocou o pacote no meu porta-malas, continuou falando da própria vida, até se despedir de mim e me desejar felicidades. Entrei no carro lentamente, pensando na cena que acabara de presenciar e no quanto ainda somos ignorantes a respeito das reviravoltas da vida e seus respectivos significados e valores.

***

Alguns anos atrás, vi um senhor na porta de um elevador, conduzindo pelo braço uma mulher, que parecia esposa, visivelmente sequelada por um AVC. Na hora comentei com meu marido que a conhecia, mas não me lembrava de onde. Mesmo sem recordar de quem se tratava, senti enorme compaixão por seu estado, pois sabia, bem no fundo, que tivera contato próximo com ela em alguma ocasião passada. Acompanhei-a com os olhos, a paciência do marido em ampará-la, o filho em seguida, levando sacolas nas mãos. Nunca mais a encontrei, embora tenha permanecido por muito tempo – muito mesmo – com sua imagem na memória e o incômodo de não lembrar quem era.

Depois da conversa com aquele senhor, quase chegando em casa, um clarão na mente me trouxe de volta toda a história e pude, enfim, recordar aquela senhora, sempre tão simpática e prestimosa, a me atender no mesmo balcão, que eu frequentara com certa periodicidade cerca de 15 anos atrás.
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2 comentários:

Anônimo disse...

Oi Gigi,
como sempre, fico meio "sem ação", meu cérebro fica embotado, sinto-me totalmente impotente por não conseguir os adjetivos adequados para comentar suas crônicas.
Seu fã de carteirinha,
Calino.

Anônimo disse...

O olhar que deitamos sobre as pessoas vem carregado de muitas coisas, a maioria delas, regras da moralidade - esse veneno que deturpa e reprime, essa castração. Claro e evidente que isso acontece antes de qualquer outro pensamento vir à tona. Depois, salvos por alguma luz no fim do túnel, conseguimos, por vezes, nos desviar e de fato ver o que há: O amor entre duas pessoas, uma história. E nada há de mais singelo e bonito do que uma história de amor... Uma história de duas vidas que se encontram; de uma vida que se acaba e de outra que recomeça, pois somos vida, dinamismo, mudanças e transformações. A beleza da vida está em seu movimento!! Ver um homem ou uma mulher, de 60 anos (ou de qual querquer outra idade)dando seguimento à sua própria existência, ou seja, simplesmente vivendo, é sempre belo e emocionante!!
Parabéns pelo texto!!