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19 de março de 2012

O que deixamos para trás


Li há muito tempo uma crônica sobre morrer e deixar algo inacabado ou por fazer. Se não me engano o texto era de Martha Medeiros e tratava do repente da morte, para os que acordam e não chegam a terminar o dia, ou os que dormem e não despertam mais nesta vida, sem um prenúncio, uma doença, uma enfermidade que se arraste. O texto era um desabafo após a morte do casseta Bussunda.

Passei a semana pensando nisso. Em quantos e tantos deixam seus afazeres pendentes, ao chegar a hora de dar um tchau. Roupa no varal, contas a pagar, panela no fogo, um casamento para ir no sábado, o vestido esperando na lavanderia, encomenda aguardada, um equipamento no conserto, a casa pra varrer, a louça pra lavar, o carro para abastecer, bolo no forno, filho na escola, um recado a dar, o livro para devolver, a casa que acabou de montar, para casar.

Despedi-me de um amigo na segunda passada; um jovem de 28 anos, o qual, como se costuma dizer, tinha a vida pela frente.  A morte dele não nos pegou de surpresa. Foi-nos anunciada, aos poucos, conforme as complicações se avolumavam. E em dado momento, nada mais havia a ser feito. Ele se foi, alegre, confiante. Deixou comigo e com os amigos mais próximos a lembrança daquele permanente ar debochado, que tinha sempre uma palavra sarcástica para momentos inconvenientes, ou não. No velório dele o imaginamos fazendo todo tipo de comentário ácido, ali mesmo, entre aquelas pessoas que já choravam suas saudades.

Zezinho, como só eu o chamava, também deixou para trás um porrilhão de sonhos e planos, após três meses de internação, vítima de doença autoimune rara. Casara-se dez dias antes de ser internado, e todos os projetos de uma vida a dois ficaram à espera do retorno que não aconteceu.

Por outro lado, não posso deixar de pensar que fazer plano para o futuro é brincar com o imponderável. Aquele monte de coisa legal que poderia ser feita agora, vai sendo guardada, a espera de um tempo lá longe, que talvez nunca chegue. Que futuro é esse? Onde ele está? Planos longínquos para não sei quando, também ficam.

Quando tive câncer aprendi o quanto tudo isso era desimportante, o quanto brigava por insignificâncias e cada vez que me despeço de alguém, tal reflexão se reforça. Ninguém para realmente pra pensar que quando se for desta para a outra tudo o que é material vai ficar por aqui, inclusive e principalmente o corpo, devidamente enterrado, ou queimado. E seguimos em frente disputando pequenezas.

Soube que quando meu amigo Zezinho começou a namorar essa que hoje se despede foi um marco na vida dele. Zezinho saiu da toca e foi viver, apaixonado. Fez o que muitos de nós não fazemos. Fez agora, pra curtir agora, pra gostar agora, porque ama agora. Poucos fazem isso. Muito poucos.

Em outra crônica lida semana passada, Silmara Franco fala sobre “virar a mesa com as quatro cadeiras e viver, serenamente, seu dia de fúria. Resolver não perder mais tempo, fazer o que gosta e ser do jeito que você, só você, acha que é melhor. Faz de conta que você morreu. E que alguém lhe deu a oportunidade de voltar para um terceiro tempo.” Confesso que não consigo pensar de pronto no que faria e como seria se tivesse um terceiro tempo, a segunda chance. Mas já posso, pelo menos em parte, distinguir o que vou empurrar para a frente, o que vou adiar, o que preciso fazer agora. Também não sei se me daria ao trabalho de deixar tudo prontinho, organizado, se soubesse como e quando fosse embora. Com toda certeza ficaria muito para trás, a cargo de um amigo ou alguém da família. Tem gente que nos lega problemas, dívidas, lembranças ruins. Outros nos presenteiam com bons sentimentos, aprendizado, recordações felizes, além de saudade, claro.

Infelizmente, não está no controle humano ajeitar os compromissos para quando chegar aquela hora. A mulher do meu amigo ficou com casa, bichos e os planos. “O último filme que eu e o Anselmo assistimos juntos foi ‘Up - Altas Aventuras’. E já que não foi possível ficar ao lado do meu marido até que ficássemos bem velhinhos, a lição que vou tirar do filme é a de realizar todos os planos que fizemos juntos em sua homenagem e memória. Vai ser difícil e eu vou demorar a conseguir, porque tudo ainda é muito doloroso. Mas eu vou ficar bem. E porei nossos sonhos em prática quando me sentir preparada para isso.”



8 comentários:

Elisabeth disse...

. . . às vezes não nos damos conta do que é importante ter ou fazer e só quando não temos mais a chance disso é que percebemos o que perdemos. Excelente texto para reflexão. Bjks e ótimo dia!!!

CS Empreendimentos Digitais disse...

Que lindo, Giovana! Como sempre nos presenteando com suas belas palavras e, certamente, o Zezinho sentiu-se homenageado - e sua Guerreira também.

Bjs

Silmara Franco disse...

Excelente reflexão, Giovana. O assunto dá pano para manga... aliás, para um traje inteiro (rs). A possibilidade da morte - ainda que seja a mais certeira de toda nossa vida - sempre assombra e mexe com o nosso imaginário. Já desisti de matutar nos versos de Moska... "Meu amor / O que você faria se só te restasse um dia? / Se o mundo fosse acabar / Me diz o que você faria"
Beijos e obrigada por lembrar de mim na sua reflexão. Uma honra :-)

Anônimo disse...

Oi Giovana,
este seu texto mexeu muito com este seu comigo, já com 70 aninhos bem vividos. Me fez refletir o que já fiz e o que deixei de fazer. Lembrei-me do que John Lennon disse: "A vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo outras coisas"
Calino.

Jane Portella disse...

Ah, Gi. De novo seus textos vêm e entram na nossas vidas e mentes e nos fazem descobrir que precisamos mudar a cada dia. Viver a vida da maneira como ela se apresenta e ser feliz com a cada momento, mesmo que ele não seja a perfeição que idealizamos.

Beijos

Carol Cunha disse...

Conheci os dois e de fato se via este brilho neles. Vivi experiência bem semelhante, tb uma relação que foi interrompida e deixou sonhos e planos suspensos, mas tb muitos ensinamentos e o principal deles: A vida é a que acontece aqui, agora!! Não sou religiosa e nem acredito que haja outra vida. Penso que isso é dar pouco valor ao que somos, enfim... E outra, tenho hoje outra relação com a morte, com o fim, e certamente por isso mesmo, me tornei mais atenta a tudo e a mim. Menos controle, culpa e medo, mais ação e leveza.
Deixo uma música do Renato Russo (Vento no Litoral) que diz bem isso. Acho que serve para os dois, como serviu para mim... "(...)Agimos certo sem querer, foi só o tempo que errou; vai ser difícil sem vc, porque vc está comigo o tempo todo e quando vejo o mar, existe algo que diz, que a vida continua e se entregar é uma bobagem. Já que vc não está aqui, o que posso fazer é cuidar de mim; quero ser feliz, ao menos; lembrar que o plano era ficarmos bem".

Ricardo Vieira disse...

Muito lindo, professora. Eu mesmo quis escrever sobre esse triste momento, mas senti que não era apropriado. Que bom que você escreveu.

Heloísa Orsolini Albertotti disse...

Oi Giovana! Vc escreveu um comentário lá no meu blog e eu vim aqui conferir o seu! Adorei!!! Que bom saber que vc está novinha em folha, não vejo a hora de chegar lá tb!!!!
Bjssssss