As mulheres deram um passo adiante e encorajaram umas às outras a tornarem
públicas suas histórias, ainda que sob o risco de serem culpabilizadas,
simplesmente pelo fato de serem o que são, por causa da roupa que vestem, do
horário que circulam na rua – comentários que costumam proteger os criminosos.
É sempre assim que acontece. No entanto, quantas crianças e idosas são abusadas
e estupradas mundo afora? Quantos meninos e meninas, freiras, fiéis das igrejas
e religiões várias, atletas?
Dados da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH) e do Boletim
Epidemiológico do Ministério da Saúde são alarmantes:
- 95.200 denúncias em 2020, no Disque 100;
- 368.333 violações, que incluem violência física, psicológica, abuso
sexual, abuso sexual físico, estupro e exploração sexual;
- 85% a 95% dos agressores são pessoas conhecidas;
- 30% são pais;
- 72% dos casos de violência contra crianças e adolescentes ocorrem na casa
da vítima ou do agressor;
- 69% dos casos são recorrentes;
- 92% das crianças/adolescentes falam a verdade quando relatam os abusos;
- Apenas 10% dos casos são notificados às autoridades;
- A maioria das vítimas é do sexo feminino e mais de 50% na faixa etária
entre 1 e 5 anos (!).
Importante repetir informações fundamentais e que não escandalizam ninguém:
crianças e adolescentes são estuprados dentro de casa, repetidas vezes, por
familiares ou amigos que frequentam o ambiente. São pais, irmãos, padrastos,
primos, tios, avôs, maridos das avós, padrinhos, agregados em geral e, ainda,
padres, pastores, gurus espirituais, esses escroques que se aproveitam da
confiança que a fé cega favorece. Vítimas fáceis, formadas pela credulidade que
as entrega de bandeja nas mãos desses pulhas.
Nos EUA, de acordo com estudo coordenado pelo especialista David Lisak,
apenas 36% dos estupros são denunciados. No Brasil, os percentuais são muito
próximos, segundo estimativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública – aqui, a
notificação é de 35%. Motivo: a certeza de que serão arremessadas para o lugar
de culpadas, mentirosas, trapaceiras, ou a certeza de que não vai dar em nada,
“porque homem é assim mesmo e homem protege homem, não adianta”, como se ouve
muitas vezes.
Na hora do ato em si, a falta de reação é ainda mais comum, primeiro porque
as mulheres sentem medo de morrer. Ou podem sofrer um torpor causado pela
invasão aos seus corpos, pela brutalidade e selvageria, então emudecem, travam.
No caso das crianças, por serem estupradas na maioria das vezes dentro de casa
por pessoas de sua convivência, acabam por interagir quase normalmente com os
agressores. Especialistas explicam que se trata de um mecanismo de defesa: não
são capazes de processar que uma pessoa da família ou amigo íntimo possa
atacá-las de forma tão violenta.
Um tempo atrás, uma amiga pediu para conversar comigo. Mal chegou a minha
casa e foi logo contando que fora estuprada na infância, pelo próprio pai. Ela,
as irmãs e o irmão. Todos submetidos à força e ao poder do pai, machão,
agressivo, autoritário. Como a história da minha amiga, outras têm sido
reveladas. E são tantas, que chego a me perguntar se alguma de nós passou pela
vida sem sofrer abuso de homem. Temo que não. A certeza de que têm direitos e
poder sobre o corpo feminino e a necessidade de exercer esse poder é tamanha,
que é até difícil imaginar uma mulher que nunca tenha passado por qualquer tipo
de abuso.
Uma vez questionei uma conhecida sobre o medo que ela tinha de que a filha
de treze anos fosse até à padaria, duas ruas atrás de onde estávamos. Ela me
respondeu:
- O marido da minha mãe abusou dela, a estuprou com o dedo e tá solto por
aí. Não temos mais sossego depois disso. Não vai sozinha a lugar nenhum.
E não se trata de gente pobre, da periferia, às quais o senso comum e
ignorante sempre atribui esse tipo de comportamento. Falo de gente fina,
elegante e nem um pouco sincera, estudada e trabalhada no dinheiro que compra
casarão no alto do bairro nobre, com garagem do tamanho de um campo de futebol.
Atrás dos muros altos dessa gente se escondem, além de piscinas e jardins
suntuosos, uma podridão medonha.
E por que isso ocorre?
Porque a maioria de nós permite, silencia, se omite, se esconde, acoberta.
Sem contar o persistente discurso que impõe à mulher o papel de objeto, do qual
o homem pode e deve dispor quando, como e onde quiser. Vide os comerciais de
lingerie para agradar homens; revistas com dicas para sensualizar e conquistar
o cara na balada; coach (argh!) ensinando o passo-a-passo para atrair
os olhares masculinos; mães que ainda orientam filhas a arrumar homem para
casar; mulheres iludidas com tudo isso, enredadas nessa cultura machista
acachapante que, mesmo nos dias de hoje, engravidam para garantir um casamento;
e muitas etcéteras. A continuar assim, alimentamos esse ciclo histórico de
poder e consequente violência. E creio que apenas nós, mulheres, sabemos lutar
para mudar essa realidade.
É necessário juntar mais corpos e vozes para engrossar esse movimento.
Espero e luto com tudo o que posso e o que aprendo todos os dias para não ver
mais uma menina de doze anos experimentar roupa diante do espelho do meu quarto
e me perguntar:
- Fala sério, tia, essa calça tá boa mesmo? Jura? Os meninos vão olhar pra
minha bunda e querer ficar comigo?
Evidente que rolou uma conversa, mas a menina não é minha filha. O que ela
disse foi reprodução do que escuta entre amigas e também em casa, por que não?
Quantas vezes ouvi mãe de menina alertando de que “assim nenhum menino vai
querer você”! Conheci garota de nove anos que já fazia depilação, porque a mãe
exigia que fosse “higiênica desde cedo”. Enquanto o objetivo da roupa, da
calcinha, da maquiagem, do sapato, da depilação, for agradar e atrair homem,
não estaremos livres da convicção deles de que têm de domínio sobre nós.
Transformar essa realidade é um poder que temos e precisamos ter consciência
disso e partir para a ação. Denunciar, estimular a denúncia, divulgar nossas
campanhas, nosso trabalho no movimento, sermos solidárias com todas as outras
em situação de abuso ou violência.
Importante: é urgente reconhecer que a criança precisa aprender na escola o
que não aprende em casa. Aula de educação sexual não ensina ninguém a fazer
sexo; ensina as diferenças e o respeito a essas diferenças; ensina
autoproteção. Milhares de meninas e meninos são rotineiramente estuprados e
abusados em casa, sem saber que é errado, que é uma violência. É no ambiente
escolar que professores, pedagogos e psicólogos têm condições de detectar que a
criança não está bem, perdeu rendimento, está isolada, retraída, chora no
banheiro. Se a criança tiver a mínima noção sobre seu corpo e o corpo do outro,
muita violência sexual pode ser evitada. Desconfio muito – muitíssimo – dos
homens que são contra a educação sexual no âmbito escolar.
Pra terminar: é preciso ficar claro que violência sexual nada tem a ver com
sexo. Estuprar é exercer poder, é
subjugação. O homem que não tiver pênis, vai usar o que tiver à mão, vai fazer
com cabo de vassoura, de enxada, ferro, sei lá. E vai ser sempre crime.
É isso.
(Texto publicado originalmente em 2021)
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