Estávamos a uma semana do Dia Internacional da Mulher, quando fui convidada para dar uma palestra a estudantes de magistério sobre a presença da mulher na literatura. Nenhum material pronto; nada arquivado. Priorizei a tarefa e mergulhei em pesquisa sobre o assunto. Seriam poucos dias para levantar dados históricos, informações atualizadas, situar o tema e roteirizar o discurso. Mal comecei a busca e dei de cara com uma pesquisa coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília, que definiu o tom da minha conversa com as alunas – não falaria da presença, mas da ausência da mulher na literatura.
A pesquisa, iniciada em 2003 pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, coordenada por Dalcastagnè, concluiu que o perfil do autor de romances no país, publicados pelas grandes editoras (Record, Companhia das Letras e Rocco), manteve-se o mesmo por mais de quarenta anos: esse autor é homem, branco, de classe média, nascido no eixo Rio-São Paulo. Os narradores também estão no mesmo lugar que seus autores, sejam protagonistas ou coadjuvantes: na maioria são homens, brancos, de classe média, heterossexuais e moradores de grandes cidades.
Os resultados da primeira etapa da pesquisa foram divulgados em 2005 e os da segunda etapa em 2018. Foram analisados 692 romances escritos por 383 autores, nos períodos de 1965 a 1979, de 1990 a 2004 e de 2005 a 2014. Os percentuais não surpreendem, no entanto chocam, por se tratar de um registro documental de uma realidade ainda difícil de ser mudada e, pior, negada inclusive por editores.
De 1965 a 1979 foram 82,6% de autores homens contra 17,4% de autoras mulheres; de 1990 a 2004 a maioria masculina baixa para 72,7% contra 27,3% de autoras mulheres; e de 2005 a 2014 livros publicados por homens ficaram em 70,6% e de mulheres em 29,4%. Entre as protagonistas, mulheres também são minoria, e mulheres negras, tanto na posição de autoras como na de personagens protagonistas aparecem abaixo de 10%. Personagens negros, principalmente mulheres, ainda aparecem como serviçais. Os autores são majoritariamente do Rio de Janeiro (33%), São Paulo (27%) e Rio Grande do Sul (9%). O que até então poderia ter sido chamado de “achismo feminista” se revelou uma ausência gritante documentada em pesquisa acadêmica.
Não coincidentemente, à mesma época descobri o projeto “Leia Mulheres”, criado em 2014 pela escritora Joanna Walsh e já consolidado no país, com tendência a crescer cada vez mais, pois estimula braços em todos os municípios. O projeto consistia basicamente em conclamar a todos e todas a lerem mais escritoras, já que no restrito mercado editorial mulheres não tinham (e ainda não têm) tanta visibilidade. A partir de 2015, Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques levaram o Leia Mulheres para espaços físicos, como livrarias e casas de cultura. Hoje, homens e mulheres leem mulheres em cerca de 150 municípios de todos os estados brasileiros e, ainda, na Alemanha, Portugal e Suíça. Uma campanha que circulou na Internet nos convidava a contar “Quantas mulheres você tem na estante” e foi o mote escolhido para não só estimular o hábito da leitura nas alunas de magistério, como conclamá-las a valorizar a produção de escritoras, inclusive com o reforço do “você também pode”. Afinal, mulheres ainda estão ausentes na literatura e em muitos outros segmentos por falta de “autorização” do machismo estrutural que se esforça para mantê-las distantes do desenvolvimento intelectual e do mercado produtivo, em qualquer área.
Registros como o da professora Dalcastagnè existem para que mulheres que escrevem – e também as que leem – tenham conhecimento do lugar que (não) ocupam e saibam que necessitam lutar bravamente para garantir no mínimo o que lhes é de direito: o de poder publicar sua(s) obra(s). Muitas não alcançam uma editora pelo simples fato de serem mulheres – sim, acontece! Em 2015, por exemplo, a escritora Catherine Nichols, depois de ser rejeitada por quase uma dezena de editoras, experimentou enviar seu manuscrito sob o pseudônimo de George. Recebeu oito respostas positivas. Nas festas literárias com grande cobertura da imprensa nacional, quando uma mulher é o foco, quase nunca é pela qualidade do seu trabalho e, sim, pelos atributos físicos. Torna-se musa do evento e ganha fotos de seu rosto e corpo nos jornais, ao invés das capas de seus livros. Milhares de mulheres têm dificuldade de escrever/publicar por causa das jornadas domésticas. Livros escritos por mulheres ainda são considerados literatura feminina, no sentido de romântico, desinteressante para o mercado, sem qualidade literária que assegure sucesso de vendas.
Pela mesma constatação da ausência da mulher na literatura, foi fundado no Brasil, em 2017, o Movimento Feminista Literário Mulherio das Letras, que atualmente conta com mais de sete mil integrantes, todas escritoras, profissionais de Letras ou que fazem parte da produção de livros, como capistas, designers, diagramadoras, ilustradoras, editoras, etc. O Movimento foi fundado por um grupo de escritoras, reunidas em Paraty durante a Festa Literária Internacional (Flip) de 2016, convictas de que não só as autoras eram menos contempladas no mercado literário, como tinham menor visibilidade e não havia equilíbrio de gênero nos convites para os grandes eventos, até hoje dominados e ocupados por homens. Já no ano seguinte o movimento reuniu mais de quinhentas escritoras em um primeiro encontro nacional, em João Pessoa/PB e não parou mais. Teve encontro em 2018, em Guarujá/SP e, em 2019, em Natal/RN. Em 2020, a pandemia obrigou-as a realizar o encontro on line [1].
A mentora intelectual do Mulherio das Letras é a escritora santista Maria Valéria Rezende, autora de cinco romances, três livros de contos e nove infantis/juvenis, premiada com Jabuti, São Paulo de Literatura e Casa de Las Americas, entre outros. Freira e educadora popular, viajou o mundo e conheceu a pobreza extrema por todos os cantos. Com a vasta experiência adquirida em suas andanças, conhece a fundo a realidade das populações mais afastadas de nossos olhos urbanos. Poucos fazem ideia de como vivem essas pessoas. Tudo o que aprendeu, sentiu e viveu transporta para suas obras, com delicadeza e sensibilidade, numa literatura que vai do humor à realidade mais dura dos brasileiros esquecidos nas comunidades periféricas. “Eu respirei o mundo inteiro, e isso entrou pelos meus cinco sentidos. Há uma variedade de lembranças, sensações, impressões... e é com isso que eu construo a minha literatura” – ela diz. Há mais de quarenta anos mora na Paraíba, conhece muito bem a realidade do povo nordestino e transporta essa realidade para sua ficção.
À Maria Valéria Rezende juntam-se centenas de outras romancistas, contistas, cronistas, poetas, acadêmicas, entre as quais posso citar algumas, com certeza deixando muitas de fora: na categoria romance/conto temos Cinthia Kriemler, Deborah Dornellas (Prêmio Casa de Las Americas), Maria José Silveira, Patrícia Melo, Eliana Alves Cruz, Marilia Passos, Natália Borges Polesso, Conceição Evaristo (também contista, poeta e ensaísta), Henriette Effenberger, Lindevânia Martins; na poesia, Divanize Carbonieri (também contista e romancista), Marilia Kubota, Jeanne Araújo (também romancista e cronista), Diana Pilatti, Nic Cardeal, Dalila Telles Veras, Liria Porto (Prêmio Jabuti), Lia Sena; na pesquisa acadêmica, Eurídice Fiqueiredo, Regina Dalcastagnè, Lilian Schwarcz, Ana Elisa Ribeiro, Luciana Hidalgo, Candice Azevedo, Djamila Ribeiro. A lista é enorme e só cresce.
Encerro este texto convidando você, leitora(or) a passar os olhos pelas prateleiras de suas estantes e verificar quantas mulheres há nelas. Caso constate que há poucas em relação aos homens ou, na pior hipótese, que as autoras estão ausentes, a relação acima pode ser um ótimo começo para uma grande mudança (sem falar nas autoras consagradas e celebradas no Brasil e mundo afora). Fica aqui, portanto, o convite para que possamos contar com sua colaboração no processo de extinção da desigualdade de gênero na produção editorial brasileira.
[1] Em 2021 não houve
encontro. Em 2022 foi realizado novamente em João Pessoa/PB; em 2023, no Rio de
Janeiro; em 2024 em Belém/PA.
(Texto originalmente publicado na Revista Arigó, Volta Redonda, 2022)
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