Ah, pronto!
Passei a receber um tsunami de postagens patrocinadas no Facebook e no Instagram, oferecendo de tudo para chegar ao “corpo perfeito”. Desde receitas mirabolantes para enfiar goela abaixo, passando por sessões de tortura, até coisas esdrúxulas, como encolher a barriga, puxando a respiração bem profundamente, lá pra dentro, a ponto de a pessoa ficar azul, sem fôlego, tudo isso de manhã cedo, ao acordar, ainda em jejum, para alcançar o abdômen negativo. Liliane Amorim acabara de morrer e esses absurdos passavam diante dos meus olhos a todo momento. Ela queria um “corpo perfeito”, além do “corpo padrão” que já exibia em fotos nas redes sociais. Para olhos saudáveis, aquele corpo não precisava de mais nada. E ela influenciava um monte de outras mulheres e isso faz um estrago danado na cabeça de muita gente...
Tive um câncer de mama doze anos atrás. Após seis sessões de quimioterapia, passei por uma cirurgia chamada TRAM. Para quem não sabe ou não acompanhou comigo na época, minha mama esquerda foi totalmente esvaziada, preservando pele, mamilo e aréola. No mesmo procedimento, o cirurgião plástico abriu meu abdômen, como em uma abdominoplastia, cortou ali meus dois músculos reto abdominais, mergulhou-os por dentro, passando-os por um “túnel” e com meus próprios músculos preencheu minha mama. Hoje meu abdômen é protruso, feito a barriga de uma grávida de seis meses. Nem cinta disfarça, porque é rígido. Minha mama esquerda, após vinte e cinco sessões de radioterapia, deixou de ser uma promessa de mama (quase) normal. As pontas dos músculos sofreram queimadura e fizeram uma esteatonecrose. É dura feito rocha, feia, repuxada, dolorida e está diminuindo de tamanho gradativamente. Haveria uma forma de corrigir, mas para isso teria que perder mais um músculo, desta vez das costas, e não estou a fim. Por ter menopausado aos quarenta anos, por causa da quimioterapia, as consequências da disfunção hormonal apareceram cedo. Além disso tudo, o metabolismo é lerdo, ganhei peso e sou uma mulher de cinquenta e dois anos, viva da silva dentro desse corpo, satisfeita pela oportunidade de ainda estar por aqui, porém sempre com uma ponta de tristeza diante do espelho ou quando precisa comprar roupas ou na hora de escolher roupa pra ir à rua.
São doze anos parando em frente ao espelho contrariada, vendo a mama a cada dia mais feia e menor, a barriga mais apontada para a frente, as cicatrizes salientes, em seguida respirar fundo e sair logo, dizendo “sou uma privilegiada, há coisas mais importantes pra pensar, afinal tô viva”. Confesso que por diversas vezes a depressão me fez acrescentar um “pra quê”, depois de “tô viva”. Enfim, são reações humanas, compreensíveis, perdoáveis.
Dias atrás a publicitária e influenciadora Cris Guerra gravou e postou um vídeo ótimo e útil, em que falou sobre etarismo. Pedia aos humoristas – no caso, Fábio Porchat – que se atualizassem na forma como se referem às pessoas maduras. Num episódio de Porta dos Fundos, a personagem de Porchat teria feito chacota com a mãe, uma mulher de cinquenta e oito anos, lesada, tratada como uma vovozinha demente. Cris discorreu sobre como o mundo mudou para nós, mulheres, que já de bom tempo deixamos de ser velhas a partir dos quarenta, para sermos profissionais de sucesso, livres, independentes, donas de nossos narizes e de nossos corpos. Um discurso excelente, não só a respeito de mulheres, mas de pessoas maduras em geral. Compartilhei com deus e o mundo.
Só que na sequência do vídeo, pude acompanhar algumas postagens da publicitária em que ressalta o poder de escolha das mulheres maduras de, sim, poderem usar o cabelo que bem entenderem, a roupa que bem entenderem. “Minissaia depois dos 50, pode, sim!”. Claro que pode, mas há um porém aí. Pelo menos nas TLs das minhas redes sociais não passam mulheres maduras gordas e barrigudas, de minissaia e vestido tubinho e croped, com o mesmo discurso de Cris Guerra, magérrima, corpinho de uma jovem de vinte anos. Como eu, deve haver muitas mulheres da minha idade, com meu corpo, sem representatividade. Há inúmeros perfis de 50+ nas redes e nenhum de mulheres acima do “peso padrão”, desfilando roupas descoladas, utilizando-se do mesmo discurso das escolhas e etcéteras. Todas são magras, ou seja, é como se mulheres 50+ gordas não existissem.
Tudo bem, posso viver como quiser, ter a cor e o corte de cabelo que preferir e me vestir conforme der na telha. Não tenho a menor vontade de vestir uma minissaia ou um croped. Mas não há referências para mulheres com meu biotipo atual, enquanto mulheres maduras magérrimas não são maioria. Não tem interesse em produzir moda pra nós. As influenciadoras, mesmo as maduras, batalham pra manter seus corpitchos sequinhos e se esforçam para propagandear as maravilhas da idade – pra elas. Quem ousa mostrar um corpo levemente acima do “peso padrão” é execrado por comentários ofensivos. Ou seja, as falas são lindas, pertinentes, necessárias. Aplaudo e colaboro com a difusão de toda e qualquer iniciativa que atualize discursos, quebre preconceitos e paradigmas. Só que na prática ainda não vemos mulheres reais representando mulheres reais. O mercado não permite, a misoginia não permite, até as poucas influenciadoras que se dizem feministas acabam levando caixote nessa onda e seguimos assim.
(Texto publicado originalmente em 2021)
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